jeudi 30 janvier 2020

HIC ET NUNC

Vivo em estado de permanente tergiversação -
Ora estou aquém; ora estou além;
ora estou, em nenhuma parte; só,
no espaço que folga, antes da deserção.
Nunca estou no agora e, em escassas ocasiões,
pairo, evasivamente, aqui. Na brecha do ensejo!
Sei que há quem procure um consolo solaz,
na dispersão da correria. Na aclamada fugacidade!
É, decerto, um lenitivo a reputar teimosamente.
Sobejam, presentemente, pretextos para escambar
o meu modus vivendi. Só não sei, ao certo,
como isso se faz. Amanhã, com zelo refalsado,
quiçá, arranje um sábio subterfúgio.

Outono

As árvores largam
Asas tristes para o chão:
Nunca vão voar.

Manuel Resende

lundi 27 janvier 2020

Micro conto


Este Natal foi atroz. No dia 25, o meu pai fez uma cena horrível à mesa. Para variar, foi terrivelmente mal-educado e agressivo com a minha mãe. Portou-se como o brutamontes troglodita que ele é.
A páginas tantas, ameacei levantar-me da mesa e a minha irmã logo pegou no testemunho. Conseguiu deitar umas quantas achas na fogueira, aliás eram mais cepos e, às duas por três, já estava toda a gente a lançar farpas a toda a gente, até se chegar a um ponto em que a gritaria era tanta que já ninguém se entendia.
O meu pai deu uns murros na mesa e vociferou que estava na casa dele. Que se fossem todos embora. Saiu, irado, da mesa e ficámos em grande alvoroço porque achámos que ainda lhe podia dar um ataque de coração. Só imaginava a cena. Nós também a correr com ele para as Urgências do Hospital. Mas lá foi fumar um cigarro à rua e deve ter encontrado alguém do povo, porque voltou com a notícia de que a Dona Telma tinha morrido, na noite anterior.
Deixa-me que te conte mais esta história. A Dona Telma, no dia 23 tinha-se atirado para o poço do seu quintal. Foi a irmã quem deu o sinal de alarme ao encontrá-la. Estava hipotérmica. Ainda lá permaneceu umas horas largas. E estava um frio de rachar. Não se afogou. Não havia água suficiente. Pobre senhora. O meu pai e todos os homens da aldeia tiveram de içá-la com umas cordas. A senhora era bastante pesada. Foi uma trabalheira. Depois da GNR tomar conta da ocorrência, lá partiu a ambulância para o Hospital da Guarda.
A filha da Dona Telma vive em Paris e é advogada. Imagina que se apaixonou por um cigano que nem sabia ler nem escrever. Um rapaz loiro de olhos azuis. Muito bonito. Os pais nunca aceitaram o namoro e entraram em depressão. Eram emigrantes em França. Fizeram de tudo para pôr fim ao que lhes parecia ser um escândalo inominável. Mas não conseguiram. A rapariga acabou por casar com o cigano. Que, entretanto, aprendeu a ler e a escrever e até já fala francês. O pai faleceu há uns anos. A mãe ficou sozinha e sucumbiu à depressão que se aprofundou ainda mais.
A rapariga tinha vindo, no ano passado, trazer a mãe para junto da irmã. Ambas eram residentes num lar que fica perto da aldeia. Foi a irmã quem se apercebeu primeiro do desaparecimento e da fuga da Dona Telma. Lá a encontrou após umas horas de busca, quase morta de frio, no fundo do poço. Ainda ficou dois dias no Hospital, onde um enfermeiro, antes da médica lhe dar alta, lhe fez uma injeção.
Soubemos que a Dona Telma morreu pouco depois. Era muito provavelmente alérgica à substância inoculada ou terá sido mais um caso de negligência médica?
Enfim, este foi mesmo um Natal do mais triste que pode haver.

Micro conto


Joaquim Preficação. Seca tudo o que aparece pela frente. O pobre diabo chega à aldeia, depois de uma jornada de trabalho, a cambalear, todos os dias que deus faz. A maior parte do ano, parece não ter eira, nem beira. A outra metade, arranja biscates onde lhe aparecem. Pago à míngua, vive miseravelmente. Pelos vistos, nestes últimos meses, tem andado a espalhar alcatrão.
Ontem, quando a vizinha lhe foi levar a habitual panela de sopa semanal, estava enfiado, como um bicho, no casebre. Portas e janelas fechadas. Não atendia ninguém. Nem mesmo, o Baltazar das obras que o leva, todos os dias, para a cidade. Mas a Dona Armanda não é mulher de esperas pacientes. Fez estremecer até os nós da madeira. Cabisbaixo e contrariado, o Joaquim lá lhe abriu a porta.
- Atão, que se passa contigo homem de Deus?
- Ai, Dona Armanda, nem queira saber. Estou aqui com um problema muito grave.
- Que foi? Estás outra vez doente? Estiveste a beber?
-  Nah! Estou é muito cismado. Aquela cabra com quem vivi, veio dizer-me que o meu filho afinal é do meu irmão João… aquele que morreu no acidente. Que foi ele que a emprenhou. E agora, quer o herdo dele para o filho. O meu irmão que está na Suíça diz que vem cá e que a mata. Mas eu, ainda a hei-de matar antes dele! Eu mato aquela cabra! Hei-de matá-la eu primeiro!
- Ó Quim, não podes ficar em casa e deixar de ir trabalhar por uma coisa dessas. E também não te adianta andares por aí a botar essas ameaças da boca para fora. Se for verdade, não podes fazer nada. Deixá-la, mas é falar. Vai-te embora trabalhar. Precisas é de te governar homem! Essa conversa não tem chorume nenhum!
- Ela bem disse já muitas vezes que me ia pôr a pedir aquela puta manhosa. Mas eu vou tratar-lhe da saúde. Vou dar-lhe uma sova de criar bicho.
Segundo a Dona Armanda, o Joaquim lá acabou por ir trabalhar. Na opinião dela, isto é melhor do que assistir a telenovela. Aguarda ansiosamente as cenas dos próximos capítulos.

vendredi 24 janvier 2020


Micro conto


Eliana. Tem trinta anos. É médica do sistema nervoso cerebral ou algo assim. Acho que se diz Neurologista. É a rapariga que me comprou a casa, faz uns seis meses agora.
Quanto a mim. Fugi de Lisboa e vim viver para este fim do mundo. Aqui, habitam bichos difíceis. Resisto diariamente, de forma heróica – quase sobre-humana- a meter-me em alhadas. Tenho vivido estoicamente arredado de tudo e de todos. Só sei que é horrível esta gente. Desconfio que não tenho estrutura para isto. Ainda acabo a ofender meio mundo. Uma coisa é certa. Um Neandertal aqui ganhava um prémio Nobel. Mas, curiosamente, ou não, as pessoas parecem não o perceber. Parece-lhes tudo fabulosamente normal.
No meio do meu desespero, hoje, dei comigo a pensar na Eliana, que ficou dona do meu apartamento. E logo, pensei no Flávio, o meu ex-vizinho de patamar. Estes dois andam enrolados, há alguns meses. Acho que remonta até antes de ela se decidir pela compra da minha casa. Tenho para mim que esta história ainda há de dar escândalo e gritaria. É um problema delicado este! Sexo de um lado, amor do outro… No fim, é limpinho. Hão-de deixar de se falar. Os sentimentos não correspondidos acabam sempre por transtornar qualquer um, já é certo e sabido. A moça, apesar de já ser trintona, é muito imatura a meu ver. Cabe lá na cabeça de alguém comprar um apartamento no patamar do gajo com quem se anda a pinocar?!
Ouçam mais esta. O Flávio vivia, até ao ano passado, para a Clarice. Era uma relação boa, séria e decente. A Clarice faleceu com um tumor no cérebro. A Eliana, para além de ser sua médica, era também a sua melhor amiga. Eram como o cego e a sanfona. Inseparáveis. Enredo complexo, je vous l’accorde.
Olhando de longe, era um trio amoroso insólito com a morta no morro do triângulo. Como se diz por estas bandas do cu do mundo, o Flávio esqueceu-se de deitar os longes às coisas. O mancebo já antecipava que a moça ia ser sua vizinha; teria sido melhor não se deitar com ela. Agora, é claro, sente-se ameaçado pela situação. Está lixado! Tal como eu o estou neste desterro intemporal. Quem sabe, a Eliana ainda põe a casa à venda por um terço do preço que me pagou e volto ao meu apartamento antigo, agora renovado e confortável. Enfim, não sei. Isto é tudo muito turvo. Tudo muito complexo. Estou perdido e danado que nem um cão. Esta choldra ainda acaba comigo. Arre! Vou antes liquidar a garrafa de Vermute! Só mais um copo…



J'aime les pierres
bien  plus que les humains -
elles me parlent silencieusement

lundi 20 janvier 2020

Solar

Suspended lion face
Spilling at the centre
Of an unfurnished sky
How still you stand,
And how unaided
Single stalkless flower
You pour unrecompensed.

The eye sees you
Simplified by distance
Into an origin,
Your petalled head of flames
Continuously exploding.
Heat is the echo of your
Gold.

Coined there among
Lonely horizontals
You exist openly.
Our needs hourly
Climb and return like angels.
Unclosing like a hand,
You give for ever.

Philip Larkin
"Mt Fuji, Tree, Man and Snow Morning Light on The Winter Shores of Lake Yamanaka" ~ beautiful old hand painted photograph by T. Enami.
One of the famous professional photographer from early Taisho period was Enami Nobukuni (江南 信國, 1859 -1929, Yokohama) who signed his work as T. Enami. (Image: Okinawa Soba)

jeudi 9 janvier 2020


The Moth, 1960, Balthus
FALL, MY HEART

Fall, my heart, from the tree of time,
fall, you leaves, from icy branches
that once the sun embraced,
fall, as tears fall from the widened eye!

For days the earth god's hair blows in the wind
about his sun-worn brow,
whilst his fist clenches
the gaping wound beneath his shirt.

So be hard when the tender back of a cloud
bows down to you once more.
Pay no heed to the Hymettus bee,
should he fill your honeycomb again.

For a straw in times of drought means little to the peasant,
a summer little to our great lineage.

And to what can your heart attest?
Between yesterday and tomorrow it swings,
foreign and mute,
and what it beats,
is its fall out of time.


Ingeborg Bachmann, in The storm of roses, Selected Poems

mardi 7 janvier 2020

Untitled

J'ai 1500 ans.
À ma mort, j'aurai composé
ma propre anthologie
de petits chefs d'oeuvre méconnus.

Je ne laisserai rien d'autre
de parfait à l'ère vulgaire.

Et le monde continuera
de respirer.

lundi 6 janvier 2020

J'aimerais creuser un trou
au plancher, et me fourrer la tête
dedans, telle une autruche...

jeudi 2 janvier 2020

2020

Premier jour de l'an -
Je lave mon corps,
Puis je lave le sol