vendredi 24 janvier 2020

Micro conto


Eliana. Tem trinta anos. É médica do sistema nervoso cerebral ou algo assim. Acho que se diz Neurologista. É a rapariga que me comprou a casa, faz uns seis meses agora.
Quanto a mim. Fugi de Lisboa e vim viver para este fim do mundo. Aqui, habitam bichos difíceis. Resisto diariamente, de forma heróica – quase sobre-humana- a meter-me em alhadas. Tenho vivido estoicamente arredado de tudo e de todos. Só sei que é horrível esta gente. Desconfio que não tenho estrutura para isto. Ainda acabo a ofender meio mundo. Uma coisa é certa. Um Neandertal aqui ganhava um prémio Nobel. Mas, curiosamente, ou não, as pessoas parecem não o perceber. Parece-lhes tudo fabulosamente normal.
No meio do meu desespero, hoje, dei comigo a pensar na Eliana, que ficou dona do meu apartamento. E logo, pensei no Flávio, o meu ex-vizinho de patamar. Estes dois andam enrolados, há alguns meses. Acho que remonta até antes de ela se decidir pela compra da minha casa. Tenho para mim que esta história ainda há de dar escândalo e gritaria. É um problema delicado este! Sexo de um lado, amor do outro… No fim, é limpinho. Hão-de deixar de se falar. Os sentimentos não correspondidos acabam sempre por transtornar qualquer um, já é certo e sabido. A moça, apesar de já ser trintona, é muito imatura a meu ver. Cabe lá na cabeça de alguém comprar um apartamento no patamar do gajo com quem se anda a pinocar?!
Ouçam mais esta. O Flávio vivia, até ao ano passado, para a Clarice. Era uma relação boa, séria e decente. A Clarice faleceu com um tumor no cérebro. A Eliana, para além de ser sua médica, era também a sua melhor amiga. Eram como o cego e a sanfona. Inseparáveis. Enredo complexo, je vous l’accorde.
Olhando de longe, era um trio amoroso insólito com a morta no morro do triângulo. Como se diz por estas bandas do cu do mundo, o Flávio esqueceu-se de deitar os longes às coisas. O mancebo já antecipava que a moça ia ser sua vizinha; teria sido melhor não se deitar com ela. Agora, é claro, sente-se ameaçado pela situação. Está lixado! Tal como eu o estou neste desterro intemporal. Quem sabe, a Eliana ainda põe a casa à venda por um terço do preço que me pagou e volto ao meu apartamento antigo, agora renovado e confortável. Enfim, não sei. Isto é tudo muito turvo. Tudo muito complexo. Estou perdido e danado que nem um cão. Esta choldra ainda acaba comigo. Arre! Vou antes liquidar a garrafa de Vermute! Só mais um copo…

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