lundi 27 janvier 2020

Micro conto


Este Natal foi atroz. No dia 25, o meu pai fez uma cena horrível à mesa. Para variar, foi terrivelmente mal-educado e agressivo com a minha mãe. Portou-se como o brutamontes troglodita que ele é.
A páginas tantas, ameacei levantar-me da mesa e a minha irmã logo pegou no testemunho. Conseguiu deitar umas quantas achas na fogueira, aliás eram mais cepos e, às duas por três, já estava toda a gente a lançar farpas a toda a gente, até se chegar a um ponto em que a gritaria era tanta que já ninguém se entendia.
O meu pai deu uns murros na mesa e vociferou que estava na casa dele. Que se fossem todos embora. Saiu, irado, da mesa e ficámos em grande alvoroço porque achámos que ainda lhe podia dar um ataque de coração. Só imaginava a cena. Nós também a correr com ele para as Urgências do Hospital. Mas lá foi fumar um cigarro à rua e deve ter encontrado alguém do povo, porque voltou com a notícia de que a Dona Telma tinha morrido, na noite anterior.
Deixa-me que te conte mais esta história. A Dona Telma, no dia 23 tinha-se atirado para o poço do seu quintal. Foi a irmã quem deu o sinal de alarme ao encontrá-la. Estava hipotérmica. Ainda lá permaneceu umas horas largas. E estava um frio de rachar. Não se afogou. Não havia água suficiente. Pobre senhora. O meu pai e todos os homens da aldeia tiveram de içá-la com umas cordas. A senhora era bastante pesada. Foi uma trabalheira. Depois da GNR tomar conta da ocorrência, lá partiu a ambulância para o Hospital da Guarda.
A filha da Dona Telma vive em Paris e é advogada. Imagina que se apaixonou por um cigano que nem sabia ler nem escrever. Um rapaz loiro de olhos azuis. Muito bonito. Os pais nunca aceitaram o namoro e entraram em depressão. Eram emigrantes em França. Fizeram de tudo para pôr fim ao que lhes parecia ser um escândalo inominável. Mas não conseguiram. A rapariga acabou por casar com o cigano. Que, entretanto, aprendeu a ler e a escrever e até já fala francês. O pai faleceu há uns anos. A mãe ficou sozinha e sucumbiu à depressão que se aprofundou ainda mais.
A rapariga tinha vindo, no ano passado, trazer a mãe para junto da irmã. Ambas eram residentes num lar que fica perto da aldeia. Foi a irmã quem se apercebeu primeiro do desaparecimento e da fuga da Dona Telma. Lá a encontrou após umas horas de busca, quase morta de frio, no fundo do poço. Ainda ficou dois dias no Hospital, onde um enfermeiro, antes da médica lhe dar alta, lhe fez uma injeção.
Soubemos que a Dona Telma morreu pouco depois. Era muito provavelmente alérgica à substância inoculada ou terá sido mais um caso de negligência médica?
Enfim, este foi mesmo um Natal do mais triste que pode haver.

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