« La
lune est éclatante de silence.»
Paul Éluard
A noite
é uma possibilidade excepcional – a noite fechada de um verão escaldante, ainda
mais!
Aguardo
em silêncio.
Aos poucos,
vou-me habituando ao escuro e, aos poucos, vou enxergando uma claridade, no
silêncio da noite.
A lua
é cheia.
Ao longe, oiço a beleza e o perigo do mar, ao qual já me
quis atirar, sem roupa, para não mais voltar.
Sopra um vento de noroeste.
Imagino um farol e inicio uma viagem fora do tempo.
Preencho a ausência com o culto do Tédio. Que horas são aí
onde vives, nessa ilha inalcançável ?
Fatalmente, iremos morrer um dia! talvez dentro de poucos
meses, talvez sete anos – fora isto, não há certezas de nada, na encruzilhada
do Grande Caminho.
E, de repente, oiço outra vez o mar :
a revoltosa rebentação do Atlântico enche-me os ouvidos e
o seu cheiro salgado fecunda-me as narinas.
Esta é uma noite de lua cheia.
E a minha única ambição é voltar a fruir o proíbido, pois
o proíbido, já se sabe, é sempre o melhor !
«Não há crime que não tenhamos cometido em pensamento»
Goëthe
Dêem-me de volta o Desejo – um fio de desejo que seja !
Essa mola da minha vida animalesca !
Sopra, no ar, uma transparência cálida que apaga toda a minha
dor de viver na Ausência.
Sinto-me independente e soberana.
É uma sensação de profundo e secreto júbilo - como se fosse
dona do meu próximo segundo de vida e de todos os que se lhe seguem.
O ar clareia. Começa a raiar o dia. Um dia bruto. Um dia diário. Um dia desolado. Um dia votado ao Tédio. Um dia de Ausência.
Os postes de iluminação não foram ainda apagados e
projetam uma luz empalidecida.
O bocejo acontece.
A minha vida hodierna é tão somente esperar, apodrecendo.
A manhã ficará límpida e eu nem sei onde estive esta
noite. Dêem-me algum tempo, um mínimo de tempo para me aclimatar.
Olho, em meu redor, e só vejo o mar muito salgado - o mar
azul e, na sua ourela, as casas brancas dos pescadores. Imagino os peixes de
olhos gordos e vítreos, em salmoura, dentro desse mar temperado.
E as nuvens, sobre o mar, são amarelas ou douradas ao
menos.
Apetece-me agora tomar um banho de mar azul !
Eu ainda gosto de banhos de mar salgado – a mulher que sou,
só deseja Alegria ! não se quer curvar defronte da morte que pode vir de
visita, a qualquer momento.
À noite, derrama-se novamente o vasto silêncio, pelas ruas
do casario branco despovoado.
Tento, em vão, disfarçar a opressão que me espreita, num
silêncio tão grande quanto o desespero, quando penso no improvável dia de
amanhã.
Como ultrapassar essa ansiedade latente que arrasta o
corpo no seu rumor ? como fugir ao alcance desse silêncio, oco de
palavras, insone e imóvel ?
É inútil tentar agora povoar esse vazio tenebroso do
silêncio. Inútil pensar numa porta que abra, numa tábua do soalho que ranja,
numa persiana que bata com o vento.
O silêncio continua vazio e sem promessa.
Há uma descontinuidade que não é mais do que a negação da
vida e este silêncio não deixa marcas, nem provas ! quem ouve o silêncio,
de noite, não sabe sequer dizer como o sentiu !
A noite desce.
As pedras do chão brilham, nas vielas e nos becos, já vazios,
e apagam-se as luzes mais distantes.
Cai um silêncio, ainda mais fundo, nas casas brancas e
ajeitam-se as folhas nas árvores, quando some a luz das lâmpadas dos candeeiros.
Ouvem-se alguns passos tardios ressoar nas pedras da
calçada. Poucos.
A lua vai alta e o silêncio ainda maior aparece.
Pensa-se no dia que passou com as suas pequenas alegrias
mansas e os seus cansaços vários e
indefiníveis.
As crianças adormecem. Fecham-se as últimas portas que dão
para a rua. E instala-se o silêncio total, na escuridão. E os corpos deixam de
lutar.
Entra-se, neste silêncio, como um fantasma invisível na
escuridão, vivendo na orla da morte.
Sente-se mais premente a súbita ausência – uma ausência
quase palpável, um torpor indecifrável !
A dor cessa de latejar.
Sou apenas um corpo, uma pessoa, uma mulher, uma atenção
mergulhados no silêncio. Podia bem ser
uma pedra ou um pingo de chuva, não fosse o calor do estar ainda viva. Nada
mais que isso, viva ! e apenas viva, de forma mansa e silenciosa.
Engoli, faz tempo, a loucura que me alucinava calmamente e
mantenho-me, sem uma única palavra a dizer, – em mutismo, na vasta inconsciência
do mundo.
Ainda sucumbo, amiúde, à melancolia dos fins de tardes
tristes, sem nada que me conecte ao mundo. Mas o futuro é meu, enquanto eu
viver calada !
«La chair est triste hélas, et j’ai lu tous les livres
»
Stéphane Mallarmé
Escrevo por impulso.
Sinto, em mim, nascer a inspiração como água que fura as
paredes e sucumbo à rebentação, na escuridão da grande noite sem lua.
Literatura ou lixo, isto que escrevo ? – pouco importa !
Há um enigma por descortinar e eu corro atrás e treino os
meus olhos cegos, no esforço de o poder desvendar.
Serei, certamente, sujeita a juízos neste mundo cão – não me
julgo totalmente boba. Sei de algumas verdades e de algumas realidades
inventadas.
Quando era pequena, com uns sete ou oito anos de idade,
brincava com o meu primo P. de marido e mulher, no quarto grande dos meus pais
e tudo fazíamos para ter filhinhos de quem cuidar
Nunca o conseguimos !
Um sentimento de vergonha assola-nos agora, sempre que nos
encontramos, em ocasiões festivas e encontros familiares.
Tentamos evitar o olhar um do outro e trocamos palavras
desajeitadas.
Não me atirem pedras se detetarem indecências, nas minhas
histórias – nem tudo aconteceu comigo, com a minha família ou com os meus
amigos, mas muitas coisas aconteceram.
Os factos brutos existem polidos pelo buril da imaginação.
Nem tudo é realidade, mas se acreditarem, sabem que os
fantasmas existem, em alguns becos escuros e vielas pestilentas de cada vida.
Há que suportar ! Não se pode ficar ofendido pelo
excesso de realidade.
Eu, prefiro escrever a tricotar camisolas de malha.
Nada acontece quando se tricota uma camisola de malha – o cérebro
desconecta e congela. Faz bem à paz interior, dizem. Pois nunca se ouviu contar
que alguém morreu a tricotar, sentado numa poltrona. Por isso se deve ser feliz
a tricotar, embora…
Talvez aprenda ainda a tricotar uma camisola de malha,
para o próximo inverno. Nada mais tenho para fazer.
Será de cor amarela como o sol – um sol bom e quente a
cheirar a verão! Nunca é tarde para se aprender a tricotar uma camisola de
malha !
Difícil é viver só e não ter nada para fazer!
Eu, todas as noites me deito e acordo com a solidão. E a solidão
esmaga qualquer um.
É terrível só se ter um gato para conversar. O gato mia.
Eu falo. O gato talvez entenda da minha solidão, mas eu, nada entendo da
solidão do gato. O gato responde pelo nome. Saberá o gato sequer como me chamo?
Claro que há sempre a televisão — a TV e as suas elucubrações despudoradas— o inefável frisson da
eletrónica !
Melhor mesmo é aprender a tricotar uma camisola de malha !
Ser mulher é uma coisa soberba! só quem é mulher o pode
saber.
Não vale a pena pensar em desperdiçar-me à toa aprendendo
tricot, crochet ou culinária. Tudo é melhor do que ser uma estrábica da
felicidade, tricotando camisola de malha, frente às torpitudes do ecrã de TV.
A menos que seja para assistir ao ‘Último tango em
Paris’ e me excitar terrivelmente !
Ficar em casa, tricotando, vendo TV e comendo?
Não acontece nada, mas a vida não pode ser só truculências e prazeres – há um tempo para
tudo e chega-se muito depressa ao tempo em que já não há nada. Nem tricot !
Passam-se os dias, os meses, os anos. E assim se esboroa o
tempo !
Por vezes, o tempo não passa. É tão sólido o tempo, que
quase dá para cortar à faca, em pedaços que se desmancham na boca, como uma
hóstia que não se pode mastigar.
É difícil a espera, suspensa no Tempo que não passa.
E depois, ninguém morre até que começam todos a morrer, um
após outro, cronologicamente. A vida já nos foi boa até que vira ruim.
Viver tem dessas coisas! e todos vamos morrer um dia,
fracassados e expiantes, no final do percurso da via crucis – ficamos a
zeros !
O silêncio fica dono de tudo : do espaço e do tempo.
Estamos perdidos de qualquer forma. Não há escapatória !
O telefone há muito já não toca. Estou sozinha com o gato.
E quando telefono eu, o telefone chama, mas ninguém atende
ou uma voz me diz : morreu ontem ou morreu há uma semana ou morreu há um
mês…
Fica vazia a carruagem com o comboio ainda em marcha.
A grande questão é : saber aguentar !
Pois a coisa é assim mesmo ou não lhe teria chamado de via
crucis. Não sou de exageros.
No fim do rolo que é a vida, fica-se de mãos a abanar, sem
nada para fazer ou dizer. Fica-se sem assunto.
A quem ligar ?
Uma hipótese é ligar para o meu próprio número. Seria embaraçoso,
no mínimo ! e quem me atenderia a chamada?
A melancolia vai-me matando aos poucos! não se dá bem com
a alegria – essa fingida e travestida efémera vertigem de viver ! e se me
descuido ainda morro prematuramente…
Fazer o tempo parar ? é somente uma questão do relógio parar !
Mas como se pára um relógio ?
Que se dane ! Vou deitar-me e dormir ou não dormir, eis a questão, outros cem anos !
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