Confidência : quando eu morrer, sentirei muitas saudades tuas !
Bem sei que esta frase não tem lógica nenhuma. Talvez apenas um imponderável
sentido do oculto. Um erro de lógica idêntico ao ponto em que, nas nossas vidas
longínquas, surgiu o erro, nunca corrigido, e o resultado disso foi este
estranho atual modo de vida, em latência !
Fomos outrora tão raros e tão coniventes. Tão distintos dos milhões de
pessoas que andam cabisbaixos pelas ruas.
Ninguém compreenderia a nossa vida secreta, muito menos, aqueles
intolerantes à ofensa da centelha luminosa do amor, que passeiam pelo mundo os
seus olhos cheios de inveja.
Por isso, vivemos séculos a fio, escondidos de todos e dos deuses
vingadores e depois nos arrependemos, perturbados – um traço, certamente, das
nossas naturezas culpadas.
A nossa liberdade é agora tão indomável que se tornou quase inútil tentar aprisioná-la.
Somos rebeldes, bravios, altivos, irrequietos e eriçamo-nos ao menor rumor
provocado pela brisa que nos acaricia. Somos selvagens e ariscos quando outras
mãos inseguras nos tocam.
Há, em nós, essa animalidade bela e solta, por isso as nossas mãos não se
cansam de passar pelo nosso pêlo lustroso.
Oiço gritos, latidos e uivos de noite, quando não estás. Por vezes, até me
sinto transformada em vaca, em cadela, em mulher de rua ou vagabunda. Não sou
mais uma « letrada », talvez nunca o tenha sido.
Tomo banho no rio e seco ao sol o meu corpo enlameado. Sinto-me livre e
mais saudável!
Quero ser orgânica. Quero viver na praia com sol, areia e sol. Quero o
contacto com a terra e a água. Quero esvaziar o pensamento e ser tranquilamente
nada. Apenas continuar a existir mergulhada no nada interior. Quero fruir de
tudo e depois morrer e o resto que se dane !
Preciso de matar, dentro de mim, essa mulher falsamente intelectual, imersa
num vão e nervoso exercício de inteligência falsa e apressada.
Apetece-me gritar de horror e cansaço e explodir pelos ares.
Na tua ausência, o medo e depois o terror apoderam-se de mim, nas trevas do
quarto.
As bestas não costumam abandonar a vida secreta que se processa durante a
noite. Mal saia do quarto, a minha forma pode ir avolumando e apurando e quando
chegar à rua, já estarei a galopar, relinchando, com patas sensíveis e cascos
ferrados e crinas eriçadas.
Os cães ladram lá fora, pressentindo o sobrenatural.
E se, na noite alta, na cidade adormecida, não ouvires o meu relincho ?É
que não tenho mais boca para falar na escuridão das trevas.
Reina agora um silêncio total que envolve tudo na grande noite.
Transformada em égua esgazeio o olhar, como se estivesse apenas rodeada da
eternidade das trevas e não ouvisses o meu surdo relincho.
Como faço eu para voltar ao meu ente humano ?
Continuarei sendo uma besta muda e obediente, sem fulgor ?
Livra-me deste feitiço enquanto é tempo, enquanto é dia sem trevas,
enquanto ainda não entardece, se é que ainda nos resta tempo antes do breu.
Livra-me antes que a noite excecional venha e me chame para subir a
montanha.
Livra-me antes que os meus cascos para sempre se enterrem nos pântanos.
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