vendredi 30 avril 2021

Estilhaços, 2020


 

au pays de Lu, à Chung tu, au Pavillon de l'est

composé après l'ivresse


hier, au Pavillon de l'est, ivre

mon bonnet sans doute de travers

qui m'a aidé à monter à cheval?

je ne me souviens même pas d'avoir descendu l'escalier


Li Po

jeudi 29 avril 2021

Dernier quartier de lune


 

 

Penso, de mim para mim, que a VIDA não passa de um somatório de instantes mortos ou estéreis que estendem muito longamente as coisas.

Sob um céu brilhante, o dia vibra ainda, no seu último estertor, antes do anoitecer. A esta hora, sou usualmente invadida por uma vaguidão insolúvel.

Sinto, nas costas, os últimos raios quentes do Sol, mas nuvens roliças ameaçam tensamente chuva.

O dia foi violento.

As árvores rangem sob o sopro do vento incessante. As folhas estão cobertas de poeira. Tenho os lábios secos e a pele a estalar. Eriço-me com estremecimentos de frescura.

Quase já não sei respirar. E isso me perturba!

Também as minhas palavras ficaram agora tão pálidas quanto eu. Alguma coisa intensa e lívida vive nas margens roídas do meu corpo, percorrido ora por um terror triunfante, ora por uma alegria doida.

Só espero morrer noutra década se é que não morri já!

A noite tranquila de silêncio abre débeis pontes na penumbra. A sua sombra, aos poucos, desce e cobre o jardim. A escuridão amansa, delicadamente, os pensamentos brutos e solitários em que ando absorta. É como um fim de dor.

Na minha caverna, de súbito, fico calma, submissa, quieta, inexpressiva e desmemoriada.

Deito-me na cama, vagarosamente, sábia e cega como uma sonâmbula e dentro do meu coração pulsa um ponto fraco, quase desfalecido. Baixa a tensão.

Mergulho os olhos na cegueira da escuridão. Os meus sentidos nada mais percebem senão a quietude da sombra.

O vento sopra nas árvores com mais intensidade. Uma lua gorda e prenhe vive pendurada na tela escura e enevoada do firmamento.

Deslizo, lentamente, no sono.

Novas terras vão surgir, indefinidamente, sob as minhas pálpebras fechadas, e passarei a noite a fugir de todas as coisas que quase irão suceder.

mercredi 28 avril 2021

lundi 26 avril 2021

 

COMMENT PEUT-ON ÊTRE PORTUGAIS?

 

Esta frase é uma das mais conhecidas da literatura francesa e deve-se ao barão de Montesquieu. Decidi subvertê-la, desvirtuá-la, fazê-la minha e arrastá-la para esta história.

A minha tese é simples:

Como se pode viver num país onde os tentáculos viscosos da Administração Pública nos enredam e nos sugam irremediável e constantemente, atirando-nos para um vórtice abissal e medonho?

A minha teoria é que não se pode, sem perder a temperança.

A minha apreciação é empírica e corresponde tão somente à vivência de uma cidadã lambda, sem conexões, sem conhecimentos, sem cunhas, sem fortuna pessoal.

O cidadão com ligações terá, certamente, uma experiência e uma apreciação muito diferentes da minha. Pois neste ameno jardim do Éden, à beira-mar plantado, a corrupção tem outro nome e o cidadão comum, sem amigos, colocados nos sítios certos, não se pode valer de nada. Digamos que a corrupção existe, não existindo e é privilégio de alguns os happy few.

Pessoalizo, já que só posso falar do que conheço, em primeiro mão, e do que vivenciei, nestes últimos quase trinta e sete anos. Um dia decidi que afinal era portuguesa e mudei de país e de planeta, trazendo comigo uma mala de viagem (que não era de cartão), uma mochila e um filho da puta dum cérebro, com demasiados neurónios a carburar.

É por isso, a custo que renego a minha escolha antiga. Nunca, como hoje, senti tanta vergonha em ser portuguesa. E não há rosas, nem girassóis, nem papoilas, nem cravos que me convençam, volvidos estes anos, que este país não é uma desgraça absoluta.

Vou exagerar e afirmar até que, a mim, Portugal se me afigura um país subdesenvolvido, sem desprimor por alguns países em desenvolvimento, mais evoluídos do que nós, que os há.

Aliás, ousarei dizer até, que este país “ O milagre dos 900 anoscomo a ele se referiu o nosso predilecto MRS, no ano passado , é pior do que um país subdesenvolvido.

É que, num país em desenvolvimento, um cidadão lambda vai a uma repartição e, segundo boatos ouvidos, de uns e de outros que viveram em países assim rotulados, fica horas no meio de um amontoado de outros cidadãos e vai empurrando, acotovelando, avançando como pode, até que se extrai da selva e chega finalmente às goelas da jiboia, não sem levar, porém algumas notas no bolso, para as esticar discretamente, chegado o momento oportuno, e assim aumentar as probabilidades de ver o seu problema resolvido. Portugal era assim há umas décadas. Lembram-se? Agora já não!

E por que digo eu que é pior este borrão de país? Porque nesses países assim rotulados, o cidadão lambda já sabe ao que vai, com o que conta e como são tratadas e (não) resolvidas as coisas. Não cria grandes expectativas.

Aqui? Ora bem, vejamos, Portugal é membro da UE, desde … 1986?! Pasme-se. E a administração pública portuguesa continua um antro de corrupção, de incompetência, de laxismo, de ignorância, de arbitrariedades várias e difusas. Quais boas práticas? Quais desburocratizações? Quais formações e aprendizagens ao longo da vida? Deixai-me rir!

Em Portugal, já não se resolve nada com notas enfiadas, no meio da papelada, como outrora. Agora a corrupção é insidiosa e perversa. E raciocinando pelo absurdo é quase uma pena. O dinheiro era uma alavanca tão potente, uma chave multiusos que abria todas as portas estanques, que quase preferia ter de esticar uma notinha de euro, a ficar hipertensa e à beira de um ataque de nervos, de cada vez que tenho um encontro de terceiro grau com a administração pública portuguesa onde careço de ombro amigo e diligente.

Portugal é pior que um país subdesenvolvido porque nos cria expectativas. Muitas expectativas logo defraudadas! Aqui achamos que impera o estado de direito, que há respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos, que há bom senso, democracia, solidariedade. Deixai-me rir!

Do ponto de vista meramente pragmático, e excluindo os princípios da moralidade, a notinha corrupta quase compensava ao cidadão lambda afanado, sem amigos, nem conhecidos em instâncias da res publica, que agora pode andar meses, anos para resolver aquele que, aos olhos do comum dos mortais, até se afigura o assunto administrativo mais escorreito. Aquele assunto  que é tão óbvio, tão lógico que tem de ser resolvido apenas de uma maneira. Mas não, não tem resolução possível!

Aqui é Portugal, que não é um país subdesenvolvido, mas há várias maneiras de complicar um assunto por mais simples que seja, de forma intoleravelmente perversa e à revelia da lei sem que ninguém se ofusque. Senão não teria piada. Qual seria a graça?

A bem dizer, como quebraríamos nós a monotonia da espuma dos dias. E então agora com a pandemia e os confinamentos, não é tão mais excitante colocar mais uma barreira na corrida dos 400 metros, a qualquer desgraçado por mais estropiado que nos apareça?!

Um pouco de jindungo no prato de feijões do cidadão lambda, só mais um pouquinho. Que gozo que nos dá vê-lo assim com a boca a assar!  Assim nos aproximamos mais de África! Imperceptivelmente, o enredo ubuesco vai-se avolumando e com singelos passinhos de dança, deslizamos como num minuete,  até ao mundo de Kafka e os dias ganham, de repente, outro entrain! E quando damos por ela já rodopiamos, à beira da náusea, num gigantesco carrossel descontrolado!

Na realidade, eu acho que até devia olhar para isto sob outro prisma que não o do descontentamento amargurado!

Como não se regozijar por viver num país, que não sendo subdesenvolvido, com todos os inconvenientes inerentes já sobejamente conhecidos, se lhe assemelha na quantidade de emoção diária que é capaz de nos suscitar. Tanta efervescência insuspeitada!

É que ao tentar resolver um qualquer problema junto da administração pública portuguesa, apercebemo-nos que afinal estamos vivos e sentimos! Ainda temos emoções! E temos de dar graças por essa descoberta!

Sentimos primeiro um leve incómodo, um pequeno ardor no estômago, depois uma pequena infecção intestinal que nos traz agrura e uma azia incontornável; em seguida, uma erupção cutânea, acompanhada de alguma comichão e em casos extremos, um fabuloso ataque de caspa.

Numa qualquer repartição pública, quando somos bafejados pela sorte, obtendo a benevolência dos serviços, e chegamos à fala com um humano, muito rapidamente, estarrecemos e nos interrogamos se estaremos bem sintonizados para produzir e ouvir sons em língua portuguesa. Tudo isto causa um não despiciendo impacto intelectual que nos pode trazer grandes benefícios no combate à degenerescência cerebral, por exemplo!

É mais ou menos como naquela história em que um homem comprou um puzzle de 1500 peças de um quadro de Vieira da Silva, e levou meses a construir a obra, até que chegado à parte final, após aturado esforço, se apercebe que lhe faltam quatro peças. O homem tenta, a todo o custo, recuperar as peças sumidas do seu puzzle, reclamando telefonicamente, mas debalde porque ninguém, na loja, atende telefonemas.

Após várias tentativas vãs e já um pouco frustrado, com o maldito puzzle, em cima da mesa da sala, ostentando quatro buracos incomodativos, o homem decide enviar um mail ao dono da loja. Só que este último tem mais o que fazer e passa a batata quente ao seu empregado, com quem o homem fica a trocar inúmeras mensagens polidas e cordatas, na esperança de que o problema seja resolvido, um dia.  

O assistente da loja, não conhece esse produto. Nunca viu nenhuma caixa com o puzzle de Vieira da Silva, não sabe de quantas peças é feito o puzzle, nem sabe que o vendiam na loja, mas vai dando respostas vagas e fazendo perguntas recorrentes, ao homem que se impacienta a cada nova acometida do subalterno.  

A dada altura, volvidos uns bons cinco meses, quando já quase havia perdido esperança de qualquer resolução e havia guardado o puzzle numa arca, o homem recebe, por correio, uma peça de puzzle. Mas Ô rage! Ô désespoir! Ô vieillesse ennemie!

A peça única não corresponde a nenhum dos hediondos orifícios do seu puzzle. Estarão a brincar com ele! O homem sente uma indignação sem limites.

Irado, o homem desloca-se, em pessoa, à loja, e pede para falar com o empregado obtuso que, muito rispidamente, lhe responde que nada tem que ver com o assunto.

O homem revoltado não arreda pé e ameaça escrever uma queixa no livro de reclamações. O empregado, também zangado, remete-o para o serviço de assistência pós-venda, uma espécie de subsolo esconso onde se encontra a secção de reclamações amigáveis.

A moça do pós-venda, não sabe como nem onde procurar as peças em falta. Também nunca ouviu falar do puzzle Vieira da Silva o que não facilita nem um pouco a sua tarefa e começa a hostilizar o homem quando este se torna irritantemente insistente.

A moça, para se livrar do homem, pede-lhe que ligue para o fabricante do puzzle, já que a loja faz apenas revenda. Eles com certeza terão uma explicação a lhe dar e saberão onde se encontram as peças em falta. Terá de ligar para o número da fábrica. É o número xxxxxxx 57 ou 37, no fim. Não sei bem qual é. Olhe marque os dois. E fale com a colega Loira Dona De Um Só Neurónio.

O homem faz a escolha errada. Liga para o número xxxxxxx 57 e ouve, agastado, uma voz tonitruante: “Centro Pneumológico de Cascais, em que posso ajudar?” Afinal era o número xxxxxxx37. Nunca acerta numa!

Liga então para o número xxxxxxx 37 que atende ao fim de repetidas tentativas.

O homem, com a paciência presa por um fio, ainda tem de ouvir, mais uma vez, da bocarra da secretária do dono da fábrica, de nome Loira Dona de Um Só Neurónio, as mesmas extravagantes e irremediáveis perguntas grotescamente kafkianas que já lhe foram colocadas, vezes sem conta, pelo dono da loja e pelo seu assistente e depois ainda pela moça das reclamações.

A secretária do dono da fábrica rapidamente decidiu que as peças do puzzle não se encontram em lado nenhum, não existem, provavelmente nunca existiram e provavelmente as inventou ele, o homem, decerto um vilão inqualificável, descendente dos maiores bandidos, delinquentes, contrabandistas que vem reclamar peças às quais não tem direito ou é muito duvidoso que a elas tenha direito. «Já passou tanto tempo desde que comprou o puzzle, porque não as reclamou antes?! Não consegue acabar o puzzle?! E eu com isso?! Olhe deixe um buraco! Que eu já estou farta de ouvir recalcitrantes. Homessa! Que eu tenho uma vida e não é a ouvir as vossas queixas que me regozijo. Ah não! E se não está satisfeito meta o puzzle no lixo. O quê?! Diz que vai reclamar?! E vai reclamar a quem meu querido?!

Ao dono da fábrica?! Ah!Ah!Ah! Ao dono da loja?! Ah!Ah!Ah!»

E chapou-lhe com o telefone na cara.

O homem queimou o puzzle. E nesse mesmo dia foi viajar para parte incerta. Saiu do país e nunca mais foi visto.

Esta é uma parábola dos meus recentes desencontros com a administração pública portuguesa, a propósito do reembolso de taxas moderadoras que paguei indevidamente.

 

Moral da história: Vai de viagem e não voltes! E jamais digas que és Portuguesa!

 

 

 

A pedra filosofal


 

 

Comecei, recentemente, a nutrir a espartana ideia do desapego.

Seria maravilhoso ter sempre e somente tantas coisas quantas pudesse a qualquer momento enfiar em apenas uma mala de viagem e uma mochila, em menos de uma hora. Para alcançar tal meta é preciso começar já o treino.

A par desta inclinação para o desapego material está ainda o desapego espiritual. Também não se deveria aquecer demasiado nenhum dos lugares onde se está – acho que já fui longe demais no que respeita à minha atual casa. Tenho de programar, rapidamente, uma evasão espacial.

Na minha mochila, apenas levarei o meu computador portátil, um cantil de água, um caderno de apontamentos, os óculos de leitura e de sol, umas canetas e os meus documentos pessoais.

Em tempos, na minha mocidade, viajei muito.

Subi montanhas e percorri trilhos, em zonas remotas e ainda um pouco selvagens, e lembro-me de, na hora de empacotar as roupas e objetos necessários, ter usado, parcimoniosamente, o truque dos aventureiros. Tudo é contabilizado por três – três pares de meias, três cuecas, três sutiãs, três t-shirts, três pares de calças e por aí fora.

Estou em crer que, na minha próxima escapadela, serei tão moderada quanto outrora.

Nestas últimas semanas, senti necessidade de me extrair da sonolência em que mergulhei.

O uivar incessante do vento, lá fora, tornou-se insuportável. Vivo, danificada, num exílio forçado.

Durante a minha vida fui, posso admiti-lo, muito bafejada pelo destino ou pela sorte, como lhe quiserem chamar, mas nunca aproveitei devidamente as minhas potencialidades.

Defino-me como uma pessoa assaz inteligente e perspicaz, porém, nunca me dediquei, afincadamente, a estudar e a ampliar o meu conhecimento. Talvez me faltasse convicção.

As capacidades do meu cérebro são enormes, mas eu sempre desenvolvi um mecanismo algo subconsciente para o impedir de ir mais longe. Sempre me autolimitei. Vivi até agora numa inexplicável indolência. Desperdicei oportunidades várias porque preferi ficar a dormir – nos meus tempos de faculdade, nunca assistia às primeiras aulas –, porque não me apeteceu mais ir, porque me atrasei,  porque não liguei, porque me aborreci, porque desisti.

Tenho uma tendência manifesta para me deixar levar a viver a vida num obtuso estado de semiconsciência, para me dispersar com pequenos prazeres ou ínfimas curiosidades. Sinto aversão a todo o esforço e uma propensão notória desde a infância a não ter a mínima predisposição para competir. A isto se chama, li há pouco, num artigo duma revista de psicologia, o sibaritismo.

Cartas por abrir, assuntos administrativos pendentes e adiados sine die, projetos abandonados mal são esboçados, desprezo por toda e qualquer autoridade e qualquer forma de submissão.

As pessoas como eu seguem sozinhas os seus caminhos, silenciosamente.

Pode muito bem dizer-se que, aos olhos da sociedade, somos inúteis. Os demais consideram apenas que não servimos para nada.

Eu sei agora que está mais do que na hora de partir. Já preparei a mala de viagem. Só me falta escolher o destino e comprar o bilhete de avião, alter simple.

Desejo ser fluida para o resto da minha vida. Perder os contornos,  dissolver a minha imagem .

Lá fora, os galhos mortos das árvores rangem sob a força seca do vento.

Ah, como desejo adiantar-me no futuro para que o presente - esta gande pausa branca - se tranforme mais celeremente em passado.

samedi 24 avril 2021


 

 composé pour m'amuser

ivre l'invité s'est endormi, je ne suis pas encore levé

mon hôte m'appelle pour soigner mon mal aux cheveux

il me dit que le poulet et le millet sont déjà cuits,

et ajoute même que dans la jarre en grès le vin est limpide


Meng Hao jan  ( 689-740)

jeudi 22 avril 2021

mercredi 21 avril 2021

 

Die Kalte Teufelshand”

 

Já atingi a idade em que, antes de sair de casa, penso em vestir umas cuecas em bom estado, para o caso em que se me acontecer algo e tiver de ser levada de urgência, numa ambulância, para o Hospital, não venha a passar vergonhas.

Um conselho muito ouvido, da boca de minha mãe a que nunca prestei – até agora, nenhuma atenção!

Cheguei à idade em que, à noite, caio num sono profundo, após beber uma chávena de chá de camomila, de que nunca fui grande fã – até agora, acompanhada de dois soníferos para me atordoar e combater a insónia crónica de que padeço. Os comprimidos nem sempre fazem efeito.

Estou cheia de maleitas indefiníveis e por diagnosticar. Ando sem apetite nenhum e perdi muito peso. Se alguém quisesse desenhar, numa folha de papel, a minha diáfana silhueta de mulher centenária, bastar-lhe-ia esboçar meia dúzia de traços esguios a lápis de carvão.

Lá fora, o nevoeiro e um ar gélido, um frio de rachar que ameaça neve, banha a casa num halo esbranquiçado. De todos os Invernos de que me recordo, e já são muitos, este Inverno é de longe o mais hostil. Talvez por o meu corpo já não dispor de reservas de gordura, nem de energia. Mais pareço um cabide com peles secas dependuradas - um esqueleto andante!

A casa onde vivo é mais velha do que eu. Pertenceu aos meus bisavós, depois aos meus avós e  passou para os meus pais. Quando estes faleceram, num acidente de viação, era eu ainda moça, solteira e boa rapariga, como sói dizer-se, herdei esta casa de aldeia, feita de espessos blocos de granito. Uma casa à moda antiga, como já não se constroem.

A casa está como eu muito degradada, com as madeiras a cheirar a mofo e humidade, o soalho cheio de nódoas e as paredes encardidas com a fuligem da lareira e as cagadelas de gerações de moscas. As portas dos armários feitos à medida rangem desengonçadas. Algum mobiliário já foi atacado pelo bicho da madeira que deixa pequenas montanhas de poeira castanha, espalhadas pelo chão. Na cozinha, o chão está revestido de linóleo muito deteriorado.

A desarrumação também já não me afeta, por isso a mesa da cozinha, coberta com uma toalha de plástico desbotada, está cheia de tralha.

Há anos que que já ninguém me visita e eu não visito ninguém. Apenas as funcionárias do centro  de dia da aldeia vizinha, pagas pela junta de freguesia me batem, diariamente, à porta para me entregarem as refeições, em pequenas embalagens descartáveis.

Ainda me lembro da felicidade que era ter a casa limpa e acolhedora, quando o meu Simão era vivo. Já houve asseio e ordem nesta casa, outrora. Mas agora, tenho de me conformar, não sou capaz de ter a casa limpa, pois já não tenho forças para grandes esforços.

Quando relembro os doces tempos da minha infância e da minha vida de mulher, ao lado do meu marido, forma-se um novelo de emoções na garganta que dificilmente consigo dissolver.

Na aldeia, longe do resto do mundo, devem viver uma centena de almas.

Algumas casas estão em ruínas, outras foram restauradas pelos descendentes, filhos ou netos, dos seus anteriores proprietários, falecidos há décadas. Eu sou a decana da aldeia. Festejei em outubro passado, o meu centenário.

No Inverno, o vento uiva nas chaminés das pequenas casas atarracadas da aldeia. Os telhados são íngremes, por causa dos nevões e as janelas diminutas. Foram todas construídas, no início do século passado ou até no século anterior com o material da região – o granito.

É difícil viver aqui no Inverno e sei bem do que estou a falar.

Quando herdei a casa, eu e o Simão decidimos casar e deixar o nosso apartamento alugado, na cidade, para nos instalarmos na aldeia.

Todos os anos, caem aqui grandes nevões. Temos uma estrada alcatroada que nos traz até ao centro da aldeia e vários caminhos cheios de sulcos que só se podem percorrer a pé.

A carreira para a cidade, para lá em baixo, junto à estrada principal e parte de manhã e só volta à tardinha.

A aldeia, por vezes, com as poucas crianças a ir e voltar da escola e os seus pais a regressar do trabalho, na cidade, mais parece o subúrbio de uma pequena vila.

Quando nos instalámos aqui, todos olharam para nós de soslaio, com um ar de reprovação e um misto de desafio – éramos os citadinos. Hippies excêntricos! Depois, passaram muito rapidamente a ignorar-nos. O que não nos incomodou nem um pouco.

Deito-me sempre muito cedo. Assim poupo na conta da luz. Mas acontece-me amiúde ficar acordada, pela noite fora, apesar dos comprimidos para dormir que já não devem estar a fazer efeito, recordando a boa vida que vivi, ao lado do meu amor de sempre, o meu belo e generoso Simão e depois acabo por dormir o dia todo, acordando apenas ao crepúsculo.

Os meses de Inverno são muito duros. São meses escuros e frios de clausura forçada.

Nada há para fazer nos campos, nem nas hortas e também não tenho, nem nunca tive, um contacto muito próximo com os meus vizinhos. Passam-se dias e até semanas em que não vejo nem falo com ninguém, tirando as funcionárias do centro e nas minhas raras saídas à rua, apenas troco saudações e meia dúzia de palavras sobre o estado do tempo. 

Em fim de contas, não preciso de conversar senão comigo própria. Fui porventura feita para viver em solidão. Oh não, esta gente que me rodeia não pertence ao meu círculo de amigos. Esta gente vive como um bando de primatas e sempre que os encontro, inopinadamente, estão a dizer mal de alguém, destilando fel em abundância ou a mexericar desavergonhadamente. São todos farinha do mesmo saco.

Normalmente, deixo a televisão ligada o dia inteiro. Tenho assim uma companhia desde manhãzinha até que me farto e a desligo. Ouvir um som constante e difuso é algo que me acalma. A maior parte do tempo, nem oiço o que se diz nem olho para o ecrã.  Sei que há uma variedade de programas à escolha, nos vários canais, mas acabo por escolher sempre o mesmo e adormeço sentada no sofá embalada pelas vozes.

Assim passo os dias e as noites, no meu pequeno universo. A madrugada rapidamente se transforma em crepúsculo. Lá fora, não há nada, apenas um nevoeiro espesso.

Vivo num crepúsculo perpétuo e até as vidraças refletem o interior da minha casa e a minha silhueta espectral, mal acendo a luz.

Com o frio do Inverno, as minhas maleitas intensificam-se. O meu corpo dói como se os meus ossos tivessem sido quebrados um a um. Nas pernas, sinto um formigueiro constante e, frequentemente, tenho cãibras que me tolhem os movimentos, durante longos minutos supremamente desagradáveis. Doem-me os joelhos e os pés ficam completamente doridos como se alguém me desse alfinetadas.

Caminho cada vez mais lentamente, arrastando os pés e coxeando. As maleitas destroem-me o corpo implacavelmente a cada ano que passa e as minhas defesas diminuem. Já vivi tantos anos!

Há meses que também tenho os olhos constantemente molhados e choramingões. Terei de me decidir a ir consultar um oftalmologista, quando regressarem os dias bons. Alguém aqui da aldeia – talvez o filho da professora – me há-de levar à cidade, a troco de um punhado de euros  para a gasolina. Já não tenho forças para caminhar até à estrada e apanhar a carreira e deambular o dia todo pela cidade.

Sou um fantasma feito de dores. Mas já me habituei a viver com elas.

De qualquer das maneiras, nem me vale a pena pensar em ir à cidade consultar. Sei que a minha morte é iminente. Há semanas que ando com o pressentimento de que algo mau está para me acontecer.

Pode muito bem ser a minha sentença final.

lundi 12 avril 2021

mercredi 7 avril 2021

Alguma vez os longos e estéreis dias terminariam?

Se calhar só quando a morte viesse!

Assim devaneava: e se a morte for um bluff? Um truque da vida?

O dia começara às três da manhã. Sempre acordara cedo, mas agora, era a Mulher Insone.

Tinha preguiça, por antecipação, do longo dia que se seguiria: nenhum compromisso, nenhum trabalho, nenhum dever. Nem alegria, nem tristeza em demasia.

Sentou-se na poltrona, de roupão velho e puído, já que também nunca recebia visitas. Mas ficar assim tão mal-vestida era ideia que não lhe agradava, então, levantou-se e foi vestir uma blusa de seda azul elétrico e umas calças de ganga. A sua figura realmente melhorara.

Sentou-se, de novo, na poltrona.

Ela não era nem bonita, nem feia. Ela era óbvia, banal. Ela não tinha problemas de dinheiro.

E tinha telefone.

Hoje, telefonaria a quem?

Ultimamente, sempre que telefonava tinha a nítida impressão  de que estava  importunando e depois também havia a falta de assunto. Todos estavam com as suas vidas suspensas. O único assunto era a pandemia, a perda de emprego, a falta de perspetivas, a desesperança que crescia com os sucessivos confinamentos.

E se alguém lhe telefonasse?

Teria que levantar-se da poltrona, mas decerto não seria para a convidarem a ir tomar um chá à Confeitaria Nacional.

Hoje, não estava para conversas pessoais. Não atenderia. E além do mais, o telefone não tocava há semanas.

Ainda não voltara a ver-se ao espelho. Raramente, se via ao espelho. Como se tivesse medo de se ficar a conhecer demais. E ela comia muito. Engordara. A sua gordura era pálida e flácida.

Resolveu, para se ocupar um pouco, arrumar as gavetas da cómoda dos sutiãs e cuequinhas. Sentia-se bem nessa tarefa de arrumadora de gavetas. Lamentava não ser casada – se o fosse, se ocuparia também ordenando as gravatas do marido.

Ela sentia-se só. Era uma criatura inodora e insignificante. Não tinha nem marido, nem filho. Apenas tinha o gato.

Viu, com grande satisfação, que já era quase de manhã. Como o tempo afinal passava depressa! Que dádiva divina  essa passagem do tempo, arrumando gavetas.

Estava na hora de aquecer os restos do jantar da véspera. O silêncio era pesado. Ouvia-se apenas o barulho da frigideira, onde fritavam os pedaços de frango sobrantes. Pôs-se a comer. Nada de sobremesa. Não podia continuar a engordar daquela maneira. Havia milhões de pessoas com fome. Era obsceno comer sem sentir mal-estar.

Depois, ela ligou a televisão. Lixo.  Pena não fumar, seria esta a hora de acender um cigarro. Nem olhava para o ecrã. Desligou-a, aliviada.

Resolveu recortar revistas velhas para se entreter. Há muito tempo que não o fazia. Dariam umas belas colagens. Era só puxar um pouco pela imaginação.

Em seguida, ferveu água para fazer chá. Colocava-o na garrafa térmica e bebê-lo-ia, ao longo do dia. O chá não era engordativo, claro que não!

O telefone continuava sem tocar. Se ao menos tivesse colegas de trabalho, mas nem sequer já tinha trabalho!

Bebeu uma taça de chá fervente, mastigando pequenas bolachas de água e sal que lhe arranhavam as gengivas sensíveis. Melhorariam com um pouco de marmelada, mas é claro, a marmelada engordava!

Quando ia comer a terceira bolacha – ela costumava contar as coisas por três, por uma espécie de mania de ordem. Aconteceu!

Ouviu o telefone tocar.

Cuspiu, de imediato,  os pedaços de bolacha e para não dar a entender que era uma desesperada, ainda o deixou tocar meia dúzia de vezes, e cada trino era uma dor aguda no coração, pois a pessoa poderia desligar pensando que não estava ninguém em casa!

A esse pensamento precipitou-se  e disse, com voz solta :

Alô?

Boa tarde. Por favor, gostaria de falar – disse a voz feminina de uma octogenária, a avaliar pela rouquidão arrastada – com a Lurdes. Sou a Ana, amiga dela de longa data.

Minha senhora, lamento, mas nesta casa não vive ninguém com esse nome.

Mas essa não é a Travessa da Fonte?

É sim, mas que número de telefone a senhora marcou? Sim, esse é o meu número, mas garanto-lhe que não mora, nem nunca morou aqui nenhuma Lurdes.

Mas como não?! Se eu sempre falei com a minha amiga Lurdes neste número! Peça à Lurdes que venha atender, por favor!

Dona Ana tinha uma voz de comando intimidante.

Aqui não mora nenhuma Lurdes, minha senhora, já lho disse. Só moro eu.

E como é o seu nome?

O meu nome é Margarida…

É filha ou neta da Lurdes?

Ah, ah, ah a senhora tem sentido de humor! Dona Ana, creio que é tempo de desligar porque a esta hora o meu chá já deve estar gelado e eu gosto de o beber fervente.

Chá às três da tarde? Pelos vistos também não sabe a que horas se toma o chá!

O chá é porque não tenho mais nada para fazer, mas agora, peço-lhe que desligue o telefone.

A minha única intenção era falar com a Lurdes para convidá-la a vir tomar o chá das cinco, como já podemos sair de casa. Mas… ah! Tive uma ideia. Já que a Lurdes não está, porque não vem a menina? Que acha? Que acha de vir distrair uma senhora de uma certa idade?

Minha senhora, não a conheço. Acho que não…

Mas como não?!

Não e se me permite, quem vai desligar o telefone sou eu, com licença.

Ela sentiu-se aliviada, por um instante,  mas logo estremeceu: e se o demo da velha tornasse a ligar para falar com a desgraçada Lurdes? Tinha de tirar, imediatamente, o telefone da ficha.

Sim. O chá ficara gelado. A tarde estava arruinada. O dia estragado.

Sentia-se infeliz. Então em vez de beber o chá comeu um biscoito com cobertura de chocolate.

Depois, eram já quatro horas. Depois, cinco, seis , sete… Oito: hora de jantar!

Ainda restavam pedaços do frango de ontem e ela aprendera, com a avó, a nunca desperdiçar comida, muito por causa dos milhões de pessoas que morrem à fome.

Nove horas: já se podia deitar.

Escovou os dentes,  durante três minutos, pensativa. Vestiu uma velha T-shirt de algodão, meio descozida na zona dos sovacos, e entrou na cama, onde já dormia o gato faz tempo.

Os olhos teimavam em não fechar.

Ela era a Mulher Insone. Foi então que pensou nos comprimidos contra a insónia. Uma pilulazinha era o suficiente para ter um sono tranquilo. Duas iam fazer mais efeito. Três, era garantido que dormiria mesmo!

Um dia a menos. Um bom soninho era só o que precisava. Amanhã seria um novo dia e já nem se lembrava qual …

lundi 5 avril 2021


 

 

A história começa assim:

Saiu de casa para ir ao salão de beleza cortar o cabelo. O Clóvis a atenderia.

Olhou o relógio. Eram três da tarde. E de repente, lembrou-se que teria de fazer as unhas dos pés e das mãos e quem sabe uma massagem também.

Apanharia um táxi ou iria a pé?

Apanhar um táxi poderia revelar-se perigoso. Havia que desinfetar todas as superfícies primeiro. Onde colocaria as mãos? E depois teria de desinfetar muito bem as mãos.

Iria a pé. Era mais seguro. Até porque não tinha, na carteira, dinheiro, apenas o cartão de débito e motorista de táxi não costuma aceitar essa forma de pagamento.

Ela bem sabia que devia ter sempre dinheiro, na carteira, porque nunca se deve andar sem nenhum dinheiro.

Era o que  sempre ouvira da boca da avó, mulher precavida. Ocorreu-lhe ir levantar dinheiro ao distribuidor automático, mas agora estava cansada e já não queria.

Era uma tarde de abril e o ar fresco da manhã trazia a promessa de chuva. Ainda assim, ela achou que era maravilhoso e inusitado ficar de pé, na rua, ao vento que revolteava os seus cabelos, que o Clóvis – mãos de tesoura – cortaria muito curtinhos, à garçonete.

Não se lembrava quando fora a última vez que saíra sozinha para o meio da manada humana. Este momento era único e ela teria ainda, durante a vida outros milhares de momentos únicos. Assim se tranquilizava.

Pensou: “Tenho dois filhos, uma família, não estou sozinha, estou segura”.

Nutria-se das vagas e grandes esperanças que depositava em seus filhos. Eles a sustentavam de pé. E depois, não pensava em mais nada.

Estava na rua exposta. Completamente exposta a pessoas de toda a espécie. Ela – os outros. Era um binómio comprometedor. Ela estava meio atarantada. Há meses que praticamente não andava na rua. Ia de carro de porta a porta.

No passeio, ouviu duas mulheres comentar: “ O marido foi despedido. Quem não tem bom emprego, depois de certa idade…”

Não ouvira o fim da frase, mas adivinhava-o. Não. A vida não era bonita nesta época que se vivia. Se é que algum dia o fora, em outras épocas…

Ela resolveu, deliberadamente, deixar de pensar. Pensamento era visão e compreensão e ela não queria mais nem ver, nem compreender. Se tivesse que ter pensamentos, que fossem os mais tolos. Assim: “O que preparar para o jantar? Vai chover ou não? Devia ter trazido o guarda-chuva!”

Todos os dias fazia uma lista das coisas que precisava fazer – era desse modo que se ligava ao Tempo vazio e estéril. Simplesmente ela não tinha mais o que fazer.

A avó dizia-lhe, quando ela era apenas uma criança :” Tens de te esforçar muito para vencer na vida”. Seria ela, por acaso, uma “vencedora”?

Se vencer fosse estar, em plena tarde, no meio da rua, lutando contra os seus medos, tendo sobrevivido a uma doença letal e a uma pandemia, isso faria dela uma vencedora? interrogava-se ela.

Que paciência tinha ela que ter com os outros e consigo mesma. Que paciência tinha que ter para salvar a sua própria pequena vida, a sua miserável pele!

Quis pensar em outra coisa e esquecer o difícil momento. Então, ocorreu-lhe que sentia sede. Sentia a boca inteiramente seca e a garganta em fogo. E não tinha água! Esquecera a água!

E não tinha dinheiro, na carteira, para comprar uma garrafa de água, num café, ao postigo!

Que raiva ! Veio-lhe, inesperadamente, uma vontade assassina: a de matar toda a gente que cruzava na rua. Ou de dar pontapés nas coisas que eram obstáculos, na sua marcha lenta e desesperada.

A magia essencial de viver – onde estava agora?

Em que canto do mundo em confinamento?

Silêncio!

Parada na rua. 

Ela não tinha dinheiro na carteira, mas como? Se a mola do mundo era o dinheiro!

No passeio, andrajoso, um homem, já velho, pedia esmola, sentado no chão, com o seu cão, ali deitado, ao seu lado.

Ela não era dos que passam fome e frio e mendigam para sobreviver. Mas sabia dessas multidões que engrossavam agora a cada dia, e sabia como os demais viravam a cara e desviavam o olhar.

Todos sabem, mas todos fingem que não sabem – pensava ela, porque se não fingirem, sentem um mal-estar opressivo que os impede de viver. Os sensíveis, claro está. Os outros todos não sentem nada certamente ou apenas nojo e repúdio. Nem têm capacidade para compreender o que é a pobreza! Nem têm capacidade para entender nada.

E de repente, assolou-a mais esse pensamento. Na verdade, também ela era uma mendiga!

Nunca pedira esmola, mas mendigara o amor, e mendigava agora que ainda a achassem bonita e desejável.

“Sou uma pobre coitada, a única diferença entre mim e um mendigo é que sou uma remediada. Nem pobre, nem rica. Mas poderia também sentar-me no chão, ao seu lado, e mendigar, não apenas dinheiro!”

Ela deixara, há muito, de ser a mesma pessoa.

No último ano, carregara o corpo doente e uma ferida, feita com lâmina de cortar, que a tornara numa deficiente. Um dos seus elementos de atração havia-lhe sido subtraído e para ela, já nada voltaria ao normal, mesmo quando voltasse – a cicatriz era indelével.

Ela estava precisando agora de um novo destino para a extrair do sono automático em que vivia.

Finalmente, pensou, antes de se sentar, na cadeira reservada à lavagem do cabelo, que tudo na sua vida, desde que nascera, parecia macio, mas a verdade é que tudo era duro e áspero!

dimanche 4 avril 2021


 Collage

 

Parece que vai chover…

Esta noite, foi outra vez ponto e vírgula – a insónia vivida.

No jardim, cresce a hera enquanto eu não durmo.

Sopra o vento.

Pergunto-me se deixarei os meus cabelos crescerem até ao chão onde cresce a hera.

Todos os dias, espero pela noite, como quem espera por um desvio, no caminho, para poder esgueirar-se. Mas quando vem a noite, percebo, com horror, que é inútil: não alcanço fechar os olhos, no grande silêncio escuro.

Podia até ser manchete nos jornais: A MULHER INSONE. A prisão dos dias intermináveis dos quais não alcança fugir.

O silêncio da noite virou já crispação.

Viro o meu rosto para o silêncio implacável. Sei que há uma hora incógnita em que, fatalmente, descerá o quebranto da vigília insone. Não me desespero à toa!

Da minha insónia, olho pela janela do quarto, às três da madrugada.

Parece que vai chover…

Respiro fundo e ganho uma lucidez que me torna fabulosa, ainda que inútil!

Um instante de embriaguez – os pés deixam de tocar o chão! Estarei a levitar?

Nestes últimos meses, ganhei maus hábitos de vida: de manhã durmo e de noite, acordo.

A erosão vai-me desnudando até ao osso.

A solidão faz de mim uma assexuada. Um ser abstrato e lento – uma piada estritamente perfeita!

Na minha vida quase já não existe quotidiano, somente insónia.

A época que estamos atravessando é fantástica – vivemos numa eternidade de lentidão e de silêncio inusitados que nos pode, dizem os peritos, endoidecer.

Parece que vai chover…

Estou sem resistência física, meio mole e gelatinosa, como uma alforreca viscosa, cuspida pelo mar.

Estou sobrando nesta aridez silenciosa onde não consigo fechar os olhos.

A insónia crónica deixa-me, penosamente, desorientada e entorpecida, no Tempo e no Espaço.

Sou uma viajante espacial, à espera, lunática e fantasmagórica.

Estou suspensa na estratosfera até à última ordem.

vendredi 2 avril 2021

TRÍPTICO

 

« La lune est éclatante de silence

Paul Éluard

 

 

A noite é uma possibilidade excepcional – a noite fechada de um verão escaldante, ainda mais!

Aguardo em silêncio.

Aos poucos, vou-me habituando ao escuro e, aos poucos, vou enxergando uma claridade, no silêncio da noite.

A lua é cheia.

Ao longe, oiço a beleza e o perigo do mar, ao qual já me quis atirar, sem roupa, para não mais voltar.

Sopra um vento de noroeste.

Imagino um farol e inicio uma viagem fora do tempo.

Preencho a ausência com o culto do Tédio. Que horas são aí onde vives, nessa ilha inalcançável ?

Fatalmente, iremos morrer um dia! talvez dentro de poucos meses, talvez sete anos – fora isto, não há certezas de nada, na encruzilhada do Grande Caminho.

E, de repente, oiço outra vez o mar :

a revoltosa rebentação do Atlântico enche-me os ouvidos e o seu cheiro salgado fecunda-me as narinas.

Esta é uma noite de lua cheia.

E a minha única ambição é voltar a fruir o proíbido, pois o proíbido, já se sabe, é sempre o melhor !

 

 

 

«Não há crime que não tenhamos cometido em pensamento»

Goëthe

 

 

 

Dêem-me de volta o Desejo – um fio de desejo que seja ! Essa mola da minha vida animalesca !

Sopra, no ar, uma transparência cálida que apaga toda a minha dor de viver na Ausência.

Sinto-me independente e soberana.

É uma sensação de profundo e secreto júbilo - como se fosse dona do meu próximo segundo de vida e de todos os que se lhe seguem.

O ar clareia. Começa a raiar o dia. Um dia bruto. Um dia diário. Um dia desolado. Um dia votado ao Tédio. Um dia de Ausência.

Os postes de iluminação não foram ainda apagados e projetam uma luz empalidecida.

O bocejo acontece.

A minha vida hodierna é tão somente esperar, apodrecendo.

A manhã ficará límpida e eu nem sei onde estive esta noite. Dêem-me algum tempo, um mínimo de tempo para me aclimatar.

Olho, em meu redor, e só vejo o mar muito salgado - o mar azul e, na sua ourela, as casas brancas dos pescadores. Imagino os peixes de olhos gordos e vítreos, em salmoura, dentro desse mar temperado.

E as nuvens, sobre o mar, são amarelas ou douradas ao menos.

Apetece-me agora tomar um banho de mar azul !

Eu ainda gosto de banhos de mar salgado – a mulher que sou, só deseja Alegria ! não se quer curvar defronte da morte que pode vir de visita, a qualquer momento.

 

 

À noite, derrama-se novamente o vasto silêncio, pelas ruas do casario branco despovoado.

Tento, em vão, disfarçar a opressão que me espreita, num silêncio tão grande quanto o desespero, quando penso no improvável dia de amanhã.

Como ultrapassar essa ansiedade latente que arrasta o corpo no seu rumor ? como fugir ao alcance desse silêncio, oco de palavras, insone e imóvel ?

É inútil tentar agora povoar esse vazio tenebroso do silêncio. Inútil pensar numa porta que abra, numa tábua do soalho que ranja, numa persiana que bata com o vento.

O silêncio continua vazio e sem promessa.

Há uma descontinuidade que não é mais do que a negação da vida e este silêncio não deixa marcas, nem provas ! quem ouve o silêncio, de noite, não sabe sequer dizer como o sentiu !

A noite desce.

As pedras do chão brilham, nas vielas e nos becos, já vazios, e apagam-se as luzes mais distantes.

Cai um silêncio, ainda mais fundo, nas casas brancas e ajeitam-se as folhas nas árvores, quando some a luz das lâmpadas dos candeeiros.

Ouvem-se alguns passos tardios ressoar nas pedras da calçada. Poucos.

A lua vai alta e o silêncio ainda maior aparece.

Pensa-se no dia que passou com as suas pequenas alegrias mansas e os seus  cansaços vários e indefiníveis.

As crianças adormecem. Fecham-se as últimas portas que dão para a rua. E instala-se o silêncio total, na escuridão. E os corpos deixam de lutar.

Entra-se, neste silêncio, como um fantasma invisível na escuridão, vivendo na orla da morte.

Sente-se mais premente a súbita ausência – uma ausência quase palpável, um torpor indecifrável !

A dor cessa de latejar.

Sou apenas um corpo, uma pessoa, uma mulher, uma atenção mergulhados no silêncio.  Podia bem ser uma pedra ou um pingo de chuva, não fosse o calor do estar ainda viva. Nada mais que isso, viva ! e apenas viva, de forma mansa e silenciosa.

Engoli, faz tempo, a loucura que me alucinava calmamente e mantenho-me, sem uma única palavra a dizer, – em mutismo, na vasta inconsciência do mundo.

Ainda sucumbo, amiúde, à melancolia dos fins de tardes tristes, sem nada que me conecte ao mundo. Mas o futuro é meu, enquanto eu viver calada !

 

 

 

«La chair est triste hélas, et j’ai lu tous les livres »

Stéphane Mallarmé

 

 

 

Escrevo por impulso.

Sinto, em mim, nascer a inspiração como água que fura as paredes e sucumbo à rebentação, na escuridão da grande noite sem lua.

Literatura ou lixo, isto que escrevo ? – pouco importa !

Há um enigma por descortinar e eu corro atrás e treino os meus olhos cegos, no esforço de o poder desvendar.

Serei, certamente, sujeita a juízos neste mundo cão – não me julgo totalmente boba. Sei de algumas verdades e de algumas realidades inventadas.

Quando era pequena, com uns sete ou oito anos de idade, brincava com o meu primo P. de marido e mulher, no quarto grande dos meus pais e tudo fazíamos para ter filhinhos de quem cuidar

Nunca o conseguimos !

Um sentimento de vergonha assola-nos agora, sempre que nos encontramos, em ocasiões festivas e encontros familiares.

Tentamos evitar o olhar um do outro e trocamos palavras desajeitadas.

Não me atirem pedras se detetarem indecências, nas minhas histórias – nem tudo aconteceu comigo, com a minha família ou com os meus amigos, mas muitas coisas aconteceram.

Os factos brutos existem polidos pelo buril da imaginação.

Nem tudo é realidade, mas se acreditarem, sabem que os fantasmas existem, em alguns becos escuros e vielas pestilentas de cada vida.

Há que suportar ! Não se pode ficar ofendido pelo excesso de realidade.

Eu, prefiro escrever a tricotar camisolas de malha.

Nada acontece quando se tricota uma camisola de malha – o cérebro desconecta e congela. Faz bem à paz interior, dizem. Pois nunca se ouviu contar que alguém morreu a tricotar, sentado numa poltrona. Por isso se deve ser feliz a tricotar, embora…

Talvez aprenda ainda a tricotar uma camisola de malha, para o próximo inverno. Nada mais tenho para fazer.

Será de cor amarela como o sol – um sol bom e quente a cheirar a verão! Nunca é tarde para se aprender a tricotar uma camisola de malha !

Difícil é viver só e não ter nada para fazer!

Eu, todas as noites me deito e acordo com a solidão. E a solidão esmaga qualquer um.

É terrível só se ter um gato para conversar. O gato mia. Eu falo. O gato talvez entenda da minha solidão, mas eu, nada entendo da solidão do gato. O gato responde pelo nome. Saberá o gato sequer como me chamo?

Claro que há sempre a televisão  a TV e as suas elucubrações despudoradas o inefável frisson da eletrónica !

Melhor mesmo é aprender a tricotar uma camisola de malha !

Ser mulher é uma coisa soberba! só quem é mulher o pode saber.

Não vale a pena pensar em desperdiçar-me à toa aprendendo tricot, crochet ou culinária. Tudo é melhor do que ser uma estrábica da felicidade, tricotando camisola de malha, frente às torpitudes do ecrã de TV.

A menos que seja para assistir ao ‘Último tango em Paris’ e me excitar terrivelmente !

Ficar em casa, tricotando, vendo TV e comendo?

Não acontece nada, mas a vida não pode ser  só truculências e prazeres – há um tempo para tudo e chega-se muito depressa ao tempo em que já não há nada. Nem tricot !

Passam-se os dias, os meses, os anos. E assim se esboroa o tempo !

Por vezes, o tempo não passa. É tão sólido o tempo, que quase dá para cortar à faca, em pedaços que se desmancham na boca, como uma hóstia que não se pode mastigar.

É difícil a espera, suspensa no Tempo que não passa.

E depois, ninguém morre até que começam todos a morrer, um após outro, cronologicamente. A vida já nos foi boa até que vira ruim.

Viver tem dessas coisas! e todos vamos morrer um dia, fracassados e expiantes, no final do percurso da via crucis – ficamos a zeros !

O silêncio fica dono de tudo : do espaço e do tempo.

Estamos perdidos de qualquer forma. Não há escapatória !

O telefone há muito já não toca. Estou sozinha com o gato.

E quando telefono eu, o telefone chama, mas ninguém atende ou uma voz me diz : morreu ontem ou morreu há uma semana ou morreu há um mês…

Fica vazia a carruagem com o comboio ainda em marcha.

A grande questão é : saber aguentar !

Pois a coisa é assim mesmo ou não lhe teria chamado de via crucis. Não sou de exageros.

No fim do rolo que é a vida, fica-se de mãos a abanar, sem nada para fazer ou dizer. Fica-se sem assunto.

A quem ligar ?

Uma hipótese é ligar para o meu próprio número. Seria embaraçoso, no mínimo ! e quem me atenderia a chamada?

A melancolia vai-me matando aos poucos! não se dá bem com a alegria – essa fingida e travestida efémera vertigem de viver ! e se me descuido ainda morro prematuramente…

Fazer o tempo parar ? é somente uma questão  do relógio parar !

Mas como se pára um relógio ?

 

Que se dane ! Vou deitar-me e dormir ou não dormir, eis a questão, outros cem anos !