vendredi 26 février 2021

Palavras válidas # Chavões

 

Nestas últimas semanas, quase não tenho feito outra coisa senão deslocar-me, ao HGO, a fim de realizar, finalmente, a bateria de exames de controlo protocolados, que haviam ficado para trás, por razões óbvias de saturação dos respectivos serviços, em pleno pico desta terceira furiosa terceira onda.

Quem nos trata é de carne e osso, como a gente e carrega dentro de si, as mesmas forças e as mesmas fraquezas, inerentes à nossa frágil condição humana; por isso, num grande número de ocasiões, transformo-me numa “grande orelha” atenta, uma espécie de recipiente anónimo dos mais variados desabafos, apenas esboçados, algo contidos ou emocionados, consoante o momento e o interlocutor.

Reparo então, não sem espanto, que estou a usar nas minhas respostas, os chavões mais batidos e desconchavados de todos os tempos – aqueles que já tive de ouvir vezes sem conta, em que não acredito nem um pouco e que invariavelmente têm o condão de me sobreirritar.

Por que diabo, estou eu a servi-los, agora, requentados, como uma espécie de roupa velha feita com as sobras do Natal?

Questiono seriamente a minha sinceridade: ao usar estas frases feitas e totalmente desprovidas de emoção, ter-me-ei tornado numa versão despersonalizada de mim-mesma e perdido no processo qualquer capacidade de ainda me emocionar enquanto “eu”?

Sinto-me esvaziada de humanidade e à beira de uma soberba petrificação! É factual!

E é simples de constatar, através deste único sintoma: estou sem palavras válidas!

Usei-as, gastei-as, esgotei o stock!

Não comprei as suficientes e não há já à venda das que quero. Outras não me agradam. E ontem percebi a amplitude da desgraça de se ficar sem palavras válidas.

Após me ter crescido a orelha esquerda para a escuta, aquela em que a minha hiper acuidade auditiva ainda não se perdeu, ouvi imperturbável, a técnica executante da densitometria óssea falar da sua ansiedade, dos seus problemas recorrentes de artrite psoriática, agravados pelo estado de tensão nervosa em que se encontra diariamente, para gerir toda esta situação pandémica, da necessidade de manter uma atitude zen, a conselho do marido e do médico, que não sabe bem como alcançar, assoberbada como está por todo o stress circundante e … dou, por mim, de novo, a usar os chavões todos a que pude recorrer, gravados na minha memória como um tumor malicioso, a invadir as partes sadias do cérebro.

É agora indubitável que já não tenho palavras minhas – só me resta um saco inteiro cheiinho de chavões!

Foi doloroso chegar assim, uma vez mais, a esta conclusão! Já não tenho réstia de palavras válidas. Tenho de iniciar mais este luto.

Mas mais doloroso ainda, foi o episódio que se segue.

Já no 8º piso, o da Oncologia clínica, deitada na cama, do meu cubículo da sala B ( contígua à sala de chuto) aguardando a injeção intramuscular trissemanal (na coxa da minha escolha) e já, de olhos fechados, a pontos de me teletransportar, para a minha ilha tropical no Caribe, a sentir o calor na pele e os « vidrinhos » no corpo (ah ! isso, nada demais, apenas a areia a roçar-me na coxa direita)… eis que, no meu paraíso, onde caminho sozinha, oiço um choro meio abafado de criança, que ou foi abandonada pelo pai, ou pela mãe, ou por ambos e se encontra sozinha no mundo, desamparada e perdida. Um choro de aflição e desalento de partir o mais duro coração.

Abro os olhos, enevoados já de lágrimas também, em grande agitação, e olho para a enfermeira que percebendo a minha angústia, me explica, falando baixinho, quase em segredo, que na cama ao lado, separada da minha por um singelo cortinado, está um senhor idoso que se sentiu mal durante o tratamento. Está nauseado e hipertenso, demasiado ansioso por não saber quando poderá voltar a casa e piorando a cada tentativa frustrada de levantamento.

E eis senão quando, a única coisa que consigo verbalizar é o pior dos piores chavões que poluem o meu cérebro: «Não está fácil!»

Uma lança trespassa-me, naquele momento, o corpo.

Não tenho mesmo nem mais uma palavra que não seja vã. Gastei-as todas. Sumiram!

Não dá nem para esgaravatar os cantos recônditos deste corpo queimado.

O meu esforço para segurar os diques da emoção, prestes a rebentar, foi brutal. A única coisa que me salvou foi o divino soro do sono comatoso – esse potentíssimo anti-histamínico que engulo antes do tratamento, ter já começado a fazer efeito. Restam-me apenas 30 a 40 minutos de consciência antes do apagão.

Tenho de me despachar a voltar a casa. Sinto os membros meio entorpecidos, os olhos a fecharem e o cérebro a esboroar. Terei de guiar com cautela. Há que zarpar sem delongas.

Acordei agora mesmo da longa sonolência.

Devo ter sonhado, mas não me lembro de nada. Uma amnésia providencial de muitas horas!

Na garganta, continua o nó de ontem que ainda não fui dona de desfazer: ainda oiço o choro pungente de tristeza da criança idosa e acabaram-se-me as palavras que não são vãs.

lundi 22 février 2021


 

Toni Schneiders

lundi 15 février 2021


 

Da encarnação.

 

Tal como consigo encarnar, num cão pardo, momentaneamente, também, já consegui, voluntariamente, observar uma pessoa, ao acaso, despersonalizar-me e encarnar nela.

Só preciso de ter cuidado para não encarnar numa existência perigosa ou demasiado atraente, senão pode dificultar-me, sobremaneira, o regresso à minha pessoa.

Essa intrusão que pode ser de minutos, horas ou dias, consoante eu o decida ou deseje, leva-me a conhecer o sujeito nos seus mais ínfimos pensamentos, emoções e sentimentos e é um grande passo para compreendê-lo melhor, até decidir o abandonar e voltar a mim própria.

A escolha da pessoa ou animal a encarnar leva-me a estar num permanente estado de franca curiosidade e de vaga apreensão.

Sou, geralmente, tomada por um deslumbramento total, durante os minutos que antecedem todo o processo da encarnação, pois só assim posso sucumbir à vida que vou experimentar.

Começa então, paulatinamente, o processo de despersonalização, mudam a minha voz, os meus gestos, os meus tiques de linguagem, o meu sotaque, a minha démarche, os meus trejeitos, a minha força de vontade e dirijo-me a par e passo à encarnação do momento, uma usurpação de personalidade que amiúde me deixa exausta e em transe como um bruxo a receber espíritos do além.

Já sei que só daí a algumas horas ou dias, dependendo da força do maravilhamento que se operou em mim, recomeçarei integralmente a ser eu mesma, mas por vezes fico ultrajosamente renitente e levo mais tempo a voltar à minha própria vida.

Pergunto-me se não andarei eu, desde que saí do útero de minha mãe, a saltitar de encarnação em encarnação, por esse mundo fora, sem jamais ter sido pessoa alguma. Quem sabe se a minha própria vida, nunca o foi, e se eu não existo apenas como esse fantasma de outrem, que se incorpora a bel-prazer numa miríade de encarnações sucessivas.

Por norma, escolho encarnar em mulheres bonitas e bem feitas ou homens bem parecidos e atléticos, mas alguns bichos também têm a sua hora quando aparecem esplêndidos no meu radar discriminatório. 

A bem dizer procuro a excelência no excelente. Jamais encarnei em corpos falhos, decrépitos ou doentes.

Ainda hoje, poderia relatar com um jorro de pormenores as emoções íntimas daquela belíssima prostituta com quem me cruzei, ao cair da tarde, numa rua esconsa, em Amesterdão e de como ela hipnotizava os homens apenas olhando-os fixamente ou ainda falar das convulsões da mente atormentada do jovem missionário açoriano, com quem dialoguei, parcimoniosamente, aos meus 20 anos, na sala de refeições de uma pensão barata do Trastevere, em Roma e ainda, da emoção mística e religiosa que me habitou, nos dias que se seguiram à visita ao papa João Paulo II, na sua residência de Castel Gandolfo, em que me encarnei numa linda e franzina freira, que possuía  aquele ar de sofrimento somente apaziguado pela paz de ter uma missão superior para cumprir na vida.

Andei durante um tempo, depois desse episódio, a passear por Roma, com a doçura moral da freirinha, impressa no meu rosto. Toda eu me tornei na moralidade personificada. Vesti imaginárias saias longas e blusas de mangas compridas. Toda eu era o pudor e o preconceito dessa freirinha e olhava para as coxas nuas das romanas, com um olhar reprovador, e corava ao pensar na tentação que representavam para os homens que as olhavam e mandavam piropos em todas as direções.

Passados uns dias, entreguei sadiamente o meu corpo nu e amoral ao sol, numa praia semi-deserta e já nenhum resquício da tensão evangelical da santa moça sobrava em mim.

Provavelmente, esta minha sede de despersonalização e ulterior encarnação, tenha que ver com um desejo incontrolado de minerar todas as emoções e sensações humanas e não humanas, de beber todo o mundo até ficar tonta e embriagada e esquecida do meu próprio circunscrito fantasma, limitado na sua pequenez e insignificância.

Há também aquele cão labrador em cio - recordo agora a custo-, era eu adolescente, que pode ter-me tomado por uma fêmea que podia ser cadela, e me quis cobrir, por instantes, e ao qual a minha mãe teve de dar um valente pontapé, para que me largasse, pois já se havia atirado e pendurado com as patas nas minhas costas, que o deixou a ganir e por quem pela primeira vez sofri essa dor aguda do mau trato no corpo…

 

 



 L'éclaircie N'est Encore Qu'une Vague Espérance by Pierre Lucas

La robe noire

 

 

Christiane encore enfant, en regardant les photos du mariage de ses parents, interroge sa maman sur la raison pour laquelle elle portait, contre toute attente et en dépit des conventions et des coutumes plus récentes, dans nos cultures occidentales, une robe de mariée noire.

Sa maman lui explique qu’elle faisait le deuil de sa sœur qui avait été tuée par les allemands.

Et pourquoi a-t'elle été tuée demande l’enfant ?

Tout simplement, à cause d'un prétendant très assidu - un jeune soldat allemand, qui suivant, sans relâche, sa jeune sœur et que celle-ci avait rejeté sans détours.  

Il avait fini par découvrir que la femme qu’il avait jalousement voulu pour lui, non seulement le répudiait et lui avait brisé le coeur, mais par ailleurs, aidait la résistance belge dans ses actions contre l'occupant nazi, donc contre lui. 

Aveuglé par sa souffrance et son dépit, il a saisi cette occasion pour se venger et a fini par la dénoncer.

Le jour de l'arrestation de sa jeune soeur, prénommée Christiane, le jeune soldat allemand fût retrouvé suspendu, au bout d'une corde, dans la minuscule chambre mansardée qu'il avait louée, depuis quelques mois, dans l'espoir d'y conduire sa bien-aimée. 


samedi 6 février 2021


 Roger Hilton

 


Aí está ele, de novo, o Mar –

a mais ininteligível substância não humana.

E como é misterioso o seu mistério para um ser vivo.

 

E aqui estou eu, a Mulher –

o mais ininteligível dos seres existentes,

de pé na praia, à beira dele.

 

Eu e o Mar e os nossos mistérios,

à espera de nos entregarmos um ao outro –

e é tão necessária a confiança na entrega

de dois mundos desconhecidos e

na entrega de duas (in)compreensões.

 

Olho o Mar com a mesma perplexidade já antiga.

É tudo o que posso fazer.

Olho para a linha de horizonte que mo delimita e

sou incapaz de ver a curvatura da Terra.

 

São oito horas da manhã e

só um cão pardo corre,

livre e sem hesitação,

pelo vasto areal.

 

Apetece-me também a mim entrar no mar, mas

contrariamente ao cão, o meu corpo é frágil e dorido e

não possui essa parte de liberdade do cão –

ao entrar no frio ilimitado que ruge

nas águas salgadas do grande mar.

 

Falta-me a coragem do cão, nesta praia vazia.

Entrar no mar, para o cão é o simples jogo de existir.

Eu estou sem essa coragem.

 

Imagino-me a entrar no mar,

como esse cão pardo e

um arrepio profundo de frio percorre-me a coluna.

 

Fecho os olhos, e despersonalizo-me e sou agora esse cão pardo.

O cheiro a maresia desperta os meus sentidos adormecidos,

como após um sono secular.

 

Fico alerta e

entrego-me a uma renovada alegria que me toma toda –

como é bom este jogo leviano de apenas existir,

como um cão pardo, à beira da água salgada e fria do mar.

 

E, de repente,

abro caminho na gelidez deste líquido salgado.

Deixo-me cobrir pela primeira onda.

Dissolvo-me no brilho da água.

Penso no ritual antigo e baixo a cabeça e

o meu cabelo fica escorrendo sobre os olhos que ardem.

 

Nado um pouco e brinco com a concha das mãos na água.

Os cabelos ao sol já começam a endurecer com o sal.

 

As ondas batem, suavemente, nas minhas pernas.

Todo o meu corpo se eriça e se arrepia,

mas é um arrepio bom e

já o sol me lambe e me seca sofregamente.

 

Mergulho de novo e logo me endireito.

Quero ficar de pé, parada no mar, com as ondas a enrolar-me e

a bater-me nas costas e assim fico,

como um navio encalhado que oferece os seus costados.

 

Caminho dentro de água, de volta à praia.

O Mar opõe-me alguma resistência e

puxa-me com força para trás,

mas eu avanço qual proa de embarcação, dura e áspera.

Piso, finalmente, a areia, reluzindo de água, de sal e de sol,

como um náufrago pisa a terra firme, escapando ao perigo.

 

Volto para casa, após esta “imersão” no mar

(também o cão pardo, já saiu da água e caminha agora amarrado à trela do dono).

Daqui a minutos, terei esquecido tudo,

mas o meu corpo guardará esta memória

 

nos seus poros.

le faux miroir


 @ceciliahoglund


mercredi 3 février 2021

 


Ainda há em meu corpo, (que outrora não era feio, nem bonito), substância viva – unhas, carnes, dentes, pêlos, cabelos…

e uma mistura de resistência obtusa e de fraqueza prestimosa.

 

A cabeça continua interrogativa, mas tem as suas ausências

e perde-se amiúde numa tristeza impessoal e antiga.

 

Os olhos, baços e de pálpebras caídas, cansados de tanto se enredarem nas próprias sombras,

são intraduzíveis - semicerrados e húmidos, sempre próximos das lágrimas, como se estivessem cravados na carne do braço, duro e hirto como um cepo.

 

Os olhos interrompem-se, vazios ou até ásperos, à espera que o perigo passe, à espera de regressar do repouso, nas abissas da tristeza.

 

Há que achar a escuridão na escuridão e logo sair dessas trevas.

 

Há que andar léguas e procurar um indício de caminho.

 

Há que deixar-se guiar por um bater de asas, pelo trilho de um bicho manso ou feroz -

o seu rasto levará ao atalho.

 

Há que procurar beber em alguma fonte - uma fonte antiga e pura.

 

Há que mergulhar na linha de horizonte dos olhos – fechá-los sobre a última imagem,

antes que a água acabe por secar-te na boca.

 

Há que mergulhar na misteriosa luz das florestas escuras.

 

Há que morder as raízes, banhar-se nas águas bravas, sangrar os pés nos espinhos.

 

E depois,

 

Há que emergir, com todos os tesouros descobertos e atirar-se sofregamente ao vento.

 

Há que tornar-se apenas corpo, movimentando-se calmo – um corpo imerso num vazio profundo. Um ponto silencioso no infinito.

 

Há um buraco aberto para a tua leveza - pois que o chão está vazio sob teus pés alados.

 

Há que escutar com o corpo todo, até ao fundo da alma – os anseios íntimos.

 

As misérias e as grandezas de um corpo.

 


 Stefan Caltia                         The Winged (2007)

mardi 2 février 2021

 Das vacinas sorrateiras

Se a batotice e o chico-espertismo fossem elevados à categoria de modalidades desportivas olímpicas (o que é legítimo almejar, já que falamos aqui dos nossos desportos nacionais favoritos), teríamos uma invejável concentração de medalhados por km2, somente igualada pelo número de bufos e de chibas, cuja dor de corno, ao verem a medalha pendurada no peito do seu concidadão, é sofrida única e exclusivamente por não conseguirem o mesmo para si.
Somos ruins e ainda nos escandalizamos ao descobri-lo. Somos ruins e o mundo está a ficar perigosa e inexoravelmente parecido connosco!
A indignação dos que não prevaricam ou dos que são comedidos nestas modalidades é certamente legítima, mas é inócua.
A dada altura, é necessário sossegar. A lorpice da má fé de nada adianta!
Ainda que jamais nos habituemos a aceitá-lo, quer sejamos aldrabões ou honestos, batoteiros ou virtuosos, trapaceiros ou impolutos, chicos-espertos ou honrados, sabichões ou íntegros, espertalhões ou idóneos, espertinhos ou dignos, crápulas ou ingénuos, corruptos ou decentes, crapulosos ou honrados, vigaristas ou escrupulosos, ou um pouco de ambos, a seu dia, TODOS daremos o peido-mestre e acabaremos, dormindo de costas, numa caixa de madeira, rumo ao jardim das tabuletas!
Isto não é ilusório. Pelo contrário, é bem concreto!
Não há vacina alguma que nos salve. E o karma costuma ser um cabrão da pior espécie!
Que sossegue, por isso, a escória humana!


 Hell's door, Fair Price, 2020