Nestas últimas semanas, quase não tenho feito outra coisa senão deslocar-me,
ao HGO, a fim de realizar, finalmente, a bateria de exames de controlo protocolados,
que haviam ficado para trás, por razões óbvias de saturação dos respectivos
serviços, em pleno pico desta terceira furiosa terceira onda.
Quem nos trata é de carne e osso, como a gente e carrega dentro de si, as
mesmas forças e as mesmas fraquezas, inerentes à nossa frágil condição humana;
por isso, num grande número de ocasiões, transformo-me numa “grande orelha”
atenta, uma espécie de recipiente anónimo dos mais variados desabafos, apenas
esboçados, algo contidos ou emocionados, consoante o momento e o interlocutor.
Reparo então, não sem espanto, que estou a usar nas minhas respostas, os
chavões mais batidos e desconchavados de todos os tempos – aqueles que já tive
de ouvir vezes sem conta, em que não acredito nem um pouco e que invariavelmente
têm o condão de me sobreirritar.
Por que diabo, estou eu a servi-los, agora, requentados, como uma espécie
de roupa velha feita com as sobras do Natal?
Questiono seriamente a minha sinceridade: ao usar estas frases feitas e totalmente
desprovidas de emoção, ter-me-ei tornado numa versão despersonalizada de
mim-mesma e perdido no processo qualquer capacidade de ainda me emocionar
enquanto “eu”?
Sinto-me esvaziada de humanidade e à beira de uma soberba petrificação! É factual!
E é simples de constatar, através deste único sintoma: estou sem palavras válidas!
Usei-as, gastei-as, esgotei o stock!
Não comprei as suficientes e não há já à venda das que quero. Outras não me
agradam. E ontem percebi a amplitude da desgraça de se ficar sem palavras
válidas.
Após me ter crescido a orelha esquerda para a escuta, aquela em que a minha
hiper acuidade auditiva ainda não se perdeu, ouvi imperturbável, a técnica executante
da densitometria óssea falar da sua ansiedade, dos seus problemas recorrentes
de artrite psoriática, agravados pelo estado de tensão nervosa em que se encontra
diariamente, para gerir toda esta situação pandémica, da necessidade de manter
uma atitude zen, a conselho do marido e do médico, que não sabe bem como alcançar,
assoberbada como está por todo o stress circundante e … dou, por mim, de novo,
a usar os chavões todos a que pude recorrer, gravados na minha memória como um tumor
malicioso, a invadir as partes sadias do cérebro.
É agora indubitável que já não tenho palavras minhas – só me resta um saco
inteiro cheiinho de chavões!
Foi doloroso chegar assim, uma vez mais, a esta conclusão! Já não tenho
réstia de palavras válidas. Tenho de iniciar mais este luto.
Mas mais doloroso ainda, foi o episódio que se segue.
Já no 8º piso, o da Oncologia clínica, deitada na cama, do meu cubículo da
sala B ( contígua à sala de chuto) aguardando a injeção intramuscular trissemanal
(na coxa da minha escolha) e já, de olhos fechados, a pontos de me
teletransportar, para a minha ilha tropical no Caribe, a sentir o calor na pele
e os « vidrinhos » no corpo (ah ! isso, nada demais, apenas a
areia a roçar-me na coxa direita)… eis que, no meu paraíso, onde caminho
sozinha, oiço um choro meio abafado de criança, que ou foi abandonada pelo pai,
ou pela mãe, ou por ambos e se encontra sozinha no mundo, desamparada e perdida.
Um choro de aflição e desalento de partir o mais duro coração.
Abro os olhos, enevoados já de lágrimas também, em grande agitação, e olho
para a enfermeira que percebendo a minha angústia, me explica, falando baixinho,
quase em segredo, que na cama ao lado, separada da minha por um singelo cortinado,
está um senhor idoso que se sentiu mal durante o tratamento. Está nauseado e
hipertenso, demasiado ansioso por não saber quando poderá voltar a casa e
piorando a cada tentativa frustrada de levantamento.
E eis senão quando, a única coisa que consigo verbalizar é o pior dos
piores chavões que poluem o meu cérebro: «Não está fácil!»
Uma lança trespassa-me, naquele momento, o corpo.
Não tenho mesmo nem mais uma palavra que não seja vã. Gastei-as todas. Sumiram!
Não dá nem para esgaravatar os cantos recônditos deste corpo queimado.
O meu esforço para segurar os diques da emoção, prestes a rebentar, foi
brutal. A única coisa que me salvou foi o divino soro do sono comatoso – esse potentíssimo
anti-histamínico que engulo antes do tratamento, ter já começado a fazer efeito.
Restam-me apenas 30 a 40 minutos de consciência antes do apagão.
Tenho de me despachar a voltar a casa. Sinto os membros meio entorpecidos,
os olhos a fecharem e o cérebro a esboroar. Terei de guiar com cautela. Há que
zarpar sem delongas.
Acordei agora mesmo da longa sonolência.
Devo ter sonhado, mas não me lembro de nada. Uma amnésia providencial de muitas
horas!
Na garganta, continua o nó de ontem que ainda não fui dona de desfazer: ainda
oiço o choro pungente de tristeza da criança idosa e acabaram-se-me as palavras
que não são vãs.
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