O relógio marca oito horas. As
badaladas do sino da igreja ressoam consuetudinariamente.
Logo a seguir o silêncio. Um
silêncio profundo, opaco e quase palpável. Uma mancha difusa de luz alastra-se
vagarosamente, na parede do quarto, penetrando a cortina leve.
Clara continua imóvel,
estendida na cama, entre os lençóis revoltos. Os seus cabelos longos e
ondulados espalham-se pelas almofadas.
O calor do sol e a sua
claridade enchem o quarto. Uma profunda lassidão apoderou-se do seu corpo. Ali permanece
há horas, estendida, com os braços atrás da nuca, olhando fixamente um ponto no
tecto. Aos poucos, vai afastando o torpor que lhe tolhe os membros. Ouve os
ruídos difusos dos carros a passar na estrada, do comboio a sair da estação. De
novo, o silêncio, pautado pelo chilreado dos pássaros residentes nas árvores do
parque.
De súbito, o seu corpo é
movido por uma vontade crescente de se erguer. Estremece e levanta-se,
mobilizando todos os nervos do seu ser. Relembra a noite passada, a longa noite
sem dormir que se prolongou até à madrugada. Luísa fora embora, sem fazer
barulho e levara a mala com os seus pertences pessoais. Nada ficara dela.
Uma briga, mais uma briga
absurda, visceralmente violenta! E agora, o silêncio e aquela sensação já experimentada.
O estômago trancado, a ansiedade quase pânica, a náusea como uma morte
iminente. Aquela ameaça de partida sempre pressentida, desde o seu primeiro dia,
ao lado de Luísa.
A doença as havia como que
acorrentado uma à outra. Provavelmente, numa derradeira tentativa de supressão
do desespero, da solidão, do abandono… Luísa apaixonara-se zelosamente e
entrara, na vida de Clara, com o olhar manso, mas também afoito de um
cachorrinho a precisar de dono. E agora que Clara naufragava, imersa numa
doença sem cura, Luísa era o seu único apoio e prodigava-lhe cuidados
infinitos, de uma forma quase beatificamente abnegada. Era a única, para além da
sua mãe, que permanecia ao lado dela, quando todos se haviam posto em fuga.
Clara relembrava, justamente,
nesse preciso instante, aquela citação de Confúcio que o pai lhe escrevera, uns
dias antes de suicidar-se… Para conhecermos os
amigos é necessário passar pelo sucesso e pela desgraça. No sucesso,
verificamos a quantidade e, na desgraça, a qualidade. Decerto César, seu pai, e
ela própria, estavam votados ao mesmo fado amargo de sofrimento sem expiação.
Contudo,
as explosões de Luísa, face ao egoísmo e narcisismo de Clara, eram frequentes
ao longo desses meses de relacionamento. Também Luísa estava doente e há meses
se submetia a tratamentos numa tentativa de recuperar a saúde; o que no caso
dela, os médicos ainda consideravam ser uma possibilidade. Pesava sobre ela a dupla tarefa de cuidar de
Clara já muito enfraquecida, e de si própria; uma vez que Clara, raramente
suportava a presença de sua mãe por mais de um ou dois dias.
Sempre
que Luísa ameaçava partir, Clara, habitualmente arrogante, irónica e segura de
si, suplicava-lhe pálida e trémula, que não a abandonasse e sempre Luísa retrocedia;
só que desta vez, Clara humilhara-a ao ponto de não lhe restar outra saída.
E
o apartamento mergulhara em silêncio. Clara estava sentada na beira da cama,
parada no quarto, como se a alma lhe tivesse fugido e dela restasse apenas um
corpo vazio, uma casca oca. Não podia esperar ver Luísa surgir de volta, com o
seu bonito sorriso e os seus olhos banhados de amor e admiração. Isso
parecia-lhe uma impossibilidade.
O
silêncio prolongava-se infinitamente. Na cabeça e no peito, sentia uma
opacidade, um vácuo imenso, um buraco negro. Como viveria agora os meses que
lhe restavam?
No
quarto, que percorria com os olhos, não subsistia um único vestígio de Luísa,
nada ficara.
Clara
estremeceu. Tentara adormecer após a saída de Luísa, mas revolvera-se horas e
horas na cama e o sono não viera. Caíra numa semi-inconsciência, amolecida pela
vigília e pela dor. Passavam pela sua mente imagens de Luísa, apenas esboçadas
e já fugidias.
Tudo
se imobilizava agora à sua volta. Continuava letargicamente sentada, na beira
da cama, numa hebetude anquilosante, sem saber o que fazer. E se Luísa tivesse
deixado algum bilhete, que dissesse, como das vezes anteriores…. Amo-te
muito. Estou apenas cansada. Preciso de apanhar ar. Volto amanhã.
Clara
decidiu por fim levantar-se da cama. Talvez lhe tivesse deixado algumas
palavras num papel, na mesa da sala de estar. Remexeu febrilmente os jornais
dos dias anteriores, mas não encontrou mais nada. Subitamente, um cansaço
milenar assolou-a e ali mesmo, apoiada contra a parede, chorou em silêncio até
se sentir esgotada.
Precisava
de molhar o rosto, precisava de sentir a frescura da água na pele. Respirou
fundo e, olhando-se no espelho da casa de banho, deu uma sonora e animada
gargalhada. Amarrou os cabelos e esfregou a cara com sabão até a pele ficar
brilhante e coberta de espuma. Observou minuciosamente cada traço do seu rosto.
Notavam-se alguns sinais apenas da devastação a que se devia preparar. Procurou
o batom que Luísa lhe oferecera pelos anos.
Quando
voltou à sala, puxou os cortinados e abriu as janelas. A claridade penetrava e
tocava em tudo. Uma aragem fresca e nova agitava as cortinas. Clara sentiu um
arrepio e surpreendeu-se, com renovada energia, do encanto que lhe provocava o
sol no rosto. Debruçara-se à varanda e observava, absorta em pensamentos
inconstantes e flous, as árvores no parque como se as visse pela
primeira vez. Preparou um café e lentamente tomou consciência que o seu maior
temor era pensar. Era crucial arranjar coisas para fazer, era tudo o que lhe
importava. Tinha de sobreviver às próximas horas. Pegou nas peças de roupa
espalhadas pelo chão do quarto e da casa de banho e encheu a máquina de lavar.
Luísa tinha esquecido a sua camisola de caxemira rosa pálido. Clara, como um
autómato, vestiu a camisola e abraçou o seu peito como se estivesse a abraçá-la
a ela.
Finda
a tarefa, voltou à varanda para fumar um cigarro. A vista sobre o mar era
maravilhosa.
Ali permaneceu
imóvel, suspensa e meditativa, absorta nas imagens da sua vida com Luísa que
desfilavam num jorro desordenado e incessante. Tudo tinha terminado
abruptamente. Certamente tinham chegado ao fim do caminho. À bout de souffle.
Uma ruga funda formara-se na sua testa e um ricto de medo desenhara-se-lhe nos
cantos da boca.
De
repente, teve outro pensamento fulgurante e repentino e um sorriso aflorou nos
seus lábios… Se telefonasse a Luísa, ela voltaria. Ela voltaria, como das
outras vezes.
Olhou
em seu redor. Era afinal mais uma manhã quente de Verão. Uma manhã perfeita!
Respirava agora profundamente e sentia o coração a bater, cheio de vida. Luísa
acabaria por voltar, porque, ela, Clara, era a mais forte.
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