dimanche 8 mars 2020

TRIUNFO




O relógio marca oito horas. As badaladas do sino da igreja ressoam consuetudinariamente.
Logo a seguir o silêncio. Um silêncio profundo, opaco e quase palpável. Uma mancha difusa de luz alastra-se vagarosamente, na parede do quarto, penetrando a cortina leve.
Clara continua imóvel, estendida na cama, entre os lençóis revoltos. Os seus cabelos longos e ondulados espalham-se pelas almofadas.
O calor do sol e a sua claridade enchem o quarto. Uma profunda lassidão apoderou-se do seu corpo. Ali permanece há horas, estendida, com os braços atrás da nuca, olhando fixamente um ponto no tecto. Aos poucos, vai afastando o torpor que lhe tolhe os membros. Ouve os ruídos difusos dos carros a passar na estrada, do comboio a sair da estação. De novo, o silêncio, pautado pelo chilreado dos pássaros residentes nas árvores do parque.
De súbito, o seu corpo é movido por uma vontade crescente de se erguer. Estremece e levanta-se, mobilizando todos os nervos do seu ser. Relembra a noite passada, a longa noite sem dormir que se prolongou até à madrugada. Luísa fora embora, sem fazer barulho e levara a mala com os seus pertences pessoais. Nada ficara dela.
Uma briga, mais uma briga absurda, visceralmente violenta! E agora, o silêncio e aquela sensação já experimentada. O estômago trancado, a ansiedade quase pânica, a náusea como uma morte iminente. Aquela ameaça de partida sempre pressentida, desde o seu primeiro dia, ao lado de Luísa.
A doença as havia como que acorrentado uma à outra. Provavelmente, numa derradeira tentativa de supressão do desespero, da solidão, do abandono… Luísa apaixonara-se zelosamente e entrara, na vida de Clara, com o olhar manso, mas também afoito de um cachorrinho a precisar de dono. E agora que Clara naufragava, imersa numa doença sem cura, Luísa era o seu único apoio e prodigava-lhe cuidados infinitos, de uma forma quase beatificamente abnegada. Era a única, para além da sua mãe, que permanecia ao lado dela, quando todos se haviam posto em fuga.
Clara relembrava, justamente, nesse preciso instante, aquela citação de Confúcio que o pai lhe escrevera, uns dias antes de suicidar-se… Para conhecermos os amigos é necessário passar pelo sucesso e pela desgraça. No sucesso, verificamos a quantidade e, na desgraça, a qualidade. Decerto César, seu pai, e ela própria, estavam votados ao mesmo fado amargo de sofrimento sem expiação.
Contudo, as explosões de Luísa, face ao egoísmo e narcisismo de Clara, eram frequentes ao longo desses meses de relacionamento. Também Luísa estava doente e há meses se submetia a tratamentos numa tentativa de recuperar a saúde; o que no caso dela, os médicos ainda consideravam ser uma possibilidade.  Pesava sobre ela a dupla tarefa de cuidar de Clara já muito enfraquecida, e de si própria; uma vez que Clara, raramente suportava a presença de sua mãe por mais de um ou dois dias.
Sempre que Luísa ameaçava partir, Clara, habitualmente arrogante, irónica e segura de si, suplicava-lhe pálida e trémula, que não a abandonasse e sempre Luísa retrocedia; só que desta vez, Clara humilhara-a ao ponto de não lhe restar outra saída.
E o apartamento mergulhara em silêncio. Clara estava sentada na beira da cama, parada no quarto, como se a alma lhe tivesse fugido e dela restasse apenas um corpo vazio, uma casca oca. Não podia esperar ver Luísa surgir de volta, com o seu bonito sorriso e os seus olhos banhados de amor e admiração. Isso parecia-lhe uma impossibilidade.
O silêncio prolongava-se infinitamente. Na cabeça e no peito, sentia uma opacidade, um vácuo imenso, um buraco negro. Como viveria agora os meses que lhe restavam?
No quarto, que percorria com os olhos, não subsistia um único vestígio de Luísa, nada ficara.
Clara estremeceu. Tentara adormecer após a saída de Luísa, mas revolvera-se horas e horas na cama e o sono não viera. Caíra numa semi-inconsciência, amolecida pela vigília e pela dor. Passavam pela sua mente imagens de Luísa, apenas esboçadas e já fugidias.
Tudo se imobilizava agora à sua volta. Continuava letargicamente sentada, na beira da cama, numa hebetude anquilosante, sem saber o que fazer. E se Luísa tivesse deixado algum bilhete, que dissesse, como das vezes anteriores…. Amo-te muito. Estou apenas cansada. Preciso de apanhar ar. Volto amanhã.
Clara decidiu por fim levantar-se da cama. Talvez lhe tivesse deixado algumas palavras num papel, na mesa da sala de estar. Remexeu febrilmente os jornais dos dias anteriores, mas não encontrou mais nada. Subitamente, um cansaço milenar assolou-a e ali mesmo, apoiada contra a parede, chorou em silêncio até se sentir esgotada.
Precisava de molhar o rosto, precisava de sentir a frescura da água na pele. Respirou fundo e, olhando-se no espelho da casa de banho, deu uma sonora e animada gargalhada. Amarrou os cabelos e esfregou a cara com sabão até a pele ficar brilhante e coberta de espuma. Observou minuciosamente cada traço do seu rosto. Notavam-se alguns sinais apenas da devastação a que se devia preparar. Procurou o batom que Luísa lhe oferecera pelos anos.
Quando voltou à sala, puxou os cortinados e abriu as janelas. A claridade penetrava e tocava em tudo. Uma aragem fresca e nova agitava as cortinas. Clara sentiu um arrepio e surpreendeu-se, com renovada energia, do encanto que lhe provocava o sol no rosto. Debruçara-se à varanda e observava, absorta em pensamentos inconstantes e flous, as árvores no parque como se as visse pela primeira vez. Preparou um café e lentamente tomou consciência que o seu maior temor era pensar. Era crucial arranjar coisas para fazer, era tudo o que lhe importava. Tinha de sobreviver às próximas horas. Pegou nas peças de roupa espalhadas pelo chão do quarto e da casa de banho e encheu a máquina de lavar. Luísa tinha esquecido a sua camisola de caxemira rosa pálido. Clara, como um autómato, vestiu a camisola e abraçou o seu peito como se estivesse a abraçá-la a ela.
Finda a tarefa, voltou à varanda para fumar um cigarro. A vista sobre o mar era maravilhosa.
Ali permaneceu imóvel, suspensa e meditativa, absorta nas imagens da sua vida com Luísa que desfilavam num jorro desordenado e incessante. Tudo tinha terminado abruptamente. Certamente tinham chegado ao fim do caminho. À bout de souffle. Uma ruga funda formara-se na sua testa e um ricto de medo desenhara-se-lhe nos cantos da boca.
De repente, teve outro pensamento fulgurante e repentino e um sorriso aflorou nos seus lábios… Se telefonasse a Luísa, ela voltaria. Ela voltaria, como das outras vezes.
Olhou em seu redor. Era afinal mais uma manhã quente de Verão. Uma manhã perfeita! Respirava agora profundamente e sentia o coração a bater, cheio de vida. Luísa acabaria por voltar, porque, ela, Clara, era a mais forte.


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