Às sete serviam o pequeno
almoço. A enfermeira de serviço trazia os tabuleiros para cada um dos pacientes
e depositava-os numa mesinha, do lado de fora do quarto, junto à porta.
Tacteando com a ponta dos pés,
César procurava os chinelos que haviam escorregado para debaixo da cama.
Aconchegara-se no pijama de flanela e vestira o roupão que Manuela comprara no
El Corte Inglés e lhe oferecera pelo Natal, quando ainda viviam juntos.
O sol entrava pela janela
gradeada, reflectindo no pavimento o quadrilhado de linhas rectas
interseccionadas.
Sentia uma rigidez já familiar
na nuca e nos membros e o corpo dorido tolhia-o e tornava difícil qualquer
movimento. Olhava para as unhas dos pés, para as mãos trémulas, e impessoais
com a pele descarnada e ressequida. Os maxilares pareciam presos.
Dirigiu-se ao lavatório, situado
do lado esquerdo da porta, encheu as mãos de água e bebeu avidamente. Molhou o
rosto e respirou profundamente.
Da janela, observava o jardim
bem cuidado, semeado de bancos de madeira e de árvores frondosas, junto ao
portão da entrada. Afastara-se com desgosto. Olhara para a cama desfeita – uma
visão desoladora – após uma noite insone; idêntica às anteriores. Custava-lhe
decidir-se a abrir a porta do quarto para ir buscar a refeição.
Observava-se, mero vulto quase
desencorpado, andando eternamente em círculos, de olhos fechados, tentando
ganhar algum domínio sobre si-próprio. Exaurido, era como se sentia, como se
ali tivesse decorrido um século de silêncio, como se toda a sua existência
fosse este presente já passado, nebuloso e vago.
Envelhecera excessivamente nas
semanas que ali ficara encarcerado, envolto num silêncio mudo, confinado àquele
espaço claustrofóbico, cinzento e morto; num estado de constante depressão e
hebetude, potenciado pelas substâncias psicotrópicas e calmantes que lhe
administravam em doses cavalares. Anestesiado, ainda se perguntava em certos
momentos lúcidos, quando chegaria afinal o momento da saída. De que lhe
serviam, porém, as pressas? A família não consentiria que lhe dessem alta, sem
antes haver provas de uma total recuperação. E Clara, a filha que tivera com
Manuela, sua ex-mulher, não parecia concordar com ele nesse ponto específico.
Clara vinha visitá-lo aos fins
de semana, sempre que podia. A rapariga era a suave sacudidela que o arrancava,
ainda que momentaneamente, ao torpor a que se acostumara. Abandonava, na sua
presença, a melancolia extrema em que caía e sentia-se um pouco mais leve. Nos
restantes dias, a fadiga, inerente aos efeitos colaterais da pesada medicação
antipsicótica, prendia-o ao cadeirão onde permanecia longas horas, ora imóvel,
ora catatónico.
Manuela, que o havia
abandonado, fazia agora ano e meio, telefonava-lhe ocasionalmente. Nessas
alturas, um sentimento indeciso brotava do seu peito em ondas concêntricas, ao
som da sua voz meiga e suave… assemelhava- se a uma alegria quase pura, quase
pueril.
- Vens visitar-me?...
arriscava numa voz hesitante.
Manuela, invariavelmente,
dizia que sim, mas acabava por não aparecer, por um ou outro motivo com que se
desculpava depois.
Nos primeiros dias do seu
internamento forçado, estava muito assustado. Não se lembrava já do que pensara
e muito menos do que dissera, muito provavelmente, teriam saído da sua boca
palavras tresloucadas e frases inarticuladas… Aos outros que o ouviam perplexos
e desapontados, tudo devia parecer um completo delírio. César era aos seus
próprios olhos um estranho fracasso. Os amigos de sempre o haviam visitado nas
primeiras semanas de internamento, rareando depois e escasseando totalmente no
final. A única visita que recebia agora era a de sua filha, Clara que se metia
num avião sempre que a sua frenética e sobrecarregada agenda lho permitia.
Apesar da extensão do
tratamento e das entrevistas regulares com o psiquiatra, César continuava
inquieto. Dentro de si, crescia como um tumor, uma escuridão indefinível, um
desejo vago de se diluir, de desaparecer. Havia nele profundamente arreigada
uma tendência para a destruição. Em momentos de completo alvoroço, em que uma
fadiga imemorial se apoderava dele, sentia que não desejava continuar a pensar.
Era imperativo anular a mente, anular os pensamentos entrecruzados na sua
cabeça, as vozes contraditórias que lhe ecoavam no cérebro.
Clara, na última visita,
achara-o muito magro e pálido. César não consentiria ser um peso na vida da
filha que também lhe parecia agora mais cansada, como que translúcida de tão
magra que se tinha posto. Se ela soubesse o esforço que lhe era viver… a dor da
ferida aberta que tinha sido a partida de sua mãe.
César já mal existia como
projecto humano. Estava esgotado, assolado pelas lutas íntimas que travava
consigo próprio. O seu equilíbrio primordial tinha-se rompido
irremediavelmente, desde a partida de Manuela. Sozinho, não se sentia mais
capaz de enfrentar o mundo.
Sabia, mas calava, que havia
chegado o momento. Precisava partir.
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