lundi 9 mars 2020

FIM




Às sete serviam o pequeno almoço. A enfermeira de serviço trazia os tabuleiros para cada um dos pacientes e depositava-os numa mesinha, do lado de fora do quarto, junto à porta.
Tacteando com a ponta dos pés, César procurava os chinelos que haviam escorregado para debaixo da cama. Aconchegara-se no pijama de flanela e vestira o roupão que Manuela comprara no El Corte Inglés e lhe oferecera pelo Natal, quando ainda viviam juntos.
O sol entrava pela janela gradeada, reflectindo no pavimento o quadrilhado de linhas rectas interseccionadas. 
Sentia uma rigidez já familiar na nuca e nos membros e o corpo dorido tolhia-o e tornava difícil qualquer movimento. Olhava para as unhas dos pés, para as mãos trémulas, e impessoais com a pele descarnada e ressequida. Os maxilares pareciam presos.
Dirigiu-se ao lavatório, situado do lado esquerdo da porta, encheu as mãos de água e bebeu avidamente. Molhou o rosto e respirou profundamente.
Da janela, observava o jardim bem cuidado, semeado de bancos de madeira e de árvores frondosas, junto ao portão da entrada. Afastara-se com desgosto. Olhara para a cama desfeita – uma visão desoladora – após uma noite insone; idêntica às anteriores. Custava-lhe decidir-se a abrir a porta do quarto para ir buscar a refeição.
Observava-se, mero vulto quase desencorpado, andando eternamente em círculos, de olhos fechados, tentando ganhar algum domínio sobre si-próprio. Exaurido, era como se sentia, como se ali tivesse decorrido um século de silêncio, como se toda a sua existência fosse este presente já passado, nebuloso e vago. 
Envelhecera excessivamente nas semanas que ali ficara encarcerado, envolto num silêncio mudo, confinado àquele espaço claustrofóbico, cinzento e morto; num estado de constante depressão e hebetude, potenciado pelas substâncias psicotrópicas e calmantes que lhe administravam em doses cavalares. Anestesiado, ainda se perguntava em certos momentos lúcidos, quando chegaria afinal o momento da saída. De que lhe serviam, porém, as pressas? A família não consentiria que lhe dessem alta, sem antes haver provas de uma total recuperação. E Clara, a filha que tivera com Manuela, sua ex-mulher, não parecia concordar com ele nesse ponto específico.
Clara vinha visitá-lo aos fins de semana, sempre que podia. A rapariga era a suave sacudidela que o arrancava, ainda que momentaneamente, ao torpor a que se acostumara. Abandonava, na sua presença, a melancolia extrema em que caía e sentia-se um pouco mais leve. Nos restantes dias, a fadiga, inerente aos efeitos colaterais da pesada medicação antipsicótica, prendia-o ao cadeirão onde permanecia longas horas, ora imóvel, ora catatónico.
Manuela, que o havia abandonado, fazia agora ano e meio, telefonava-lhe ocasionalmente. Nessas alturas, um sentimento indeciso brotava do seu peito em ondas concêntricas, ao som da sua voz meiga e suave… assemelhava- se a uma alegria quase pura, quase pueril.
- Vens visitar-me?... arriscava numa voz hesitante. 
Manuela, invariavelmente, dizia que sim, mas acabava por não aparecer, por um ou outro motivo com que se desculpava depois.
Nos primeiros dias do seu internamento forçado, estava muito assustado. Não se lembrava já do que pensara e muito menos do que dissera, muito provavelmente, teriam saído da sua boca palavras tresloucadas e frases inarticuladas… Aos outros que o ouviam perplexos e desapontados, tudo devia parecer um completo delírio. César era aos seus próprios olhos um estranho fracasso. Os amigos de sempre o haviam visitado nas primeiras semanas de internamento, rareando depois e escasseando totalmente no final. A única visita que recebia agora era a de sua filha, Clara que se metia num avião sempre que a sua frenética e sobrecarregada agenda  lho permitia.
Apesar da extensão do tratamento e das entrevistas regulares com o psiquiatra, César continuava inquieto. Dentro de si, crescia como um tumor, uma escuridão indefinível, um desejo vago de se diluir, de desaparecer. Havia nele profundamente arreigada uma tendência para a destruição. Em momentos de completo alvoroço, em que uma fadiga imemorial se apoderava dele, sentia que não desejava continuar a pensar. Era imperativo anular a mente, anular os pensamentos entrecruzados na sua cabeça, as vozes contraditórias que lhe ecoavam no cérebro.
Clara, na última visita, achara-o muito magro e pálido. César não consentiria ser um peso na vida da filha que também lhe parecia agora mais cansada, como que translúcida de tão magra que se tinha posto. Se ela soubesse o esforço que lhe era viver… a dor da ferida aberta que tinha sido a partida de sua mãe.
César já mal existia como projecto humano. Estava esgotado, assolado pelas lutas íntimas que travava consigo próprio. O seu equilíbrio primordial tinha-se rompido irremediavelmente, desde a partida de Manuela. Sozinho, não se sentia mais capaz de enfrentar o mundo.
Sabia, mas calava, que havia chegado o momento. Precisava partir.


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