mardi 3 mars 2020

OBSESSÃO




Conheci a Clara, na sala de espera do serviço de Oncologia do Hospital. Um espaço decrépito e austero a reforçar o desalento que ali se respirava. A um canto, uma planta moribunda, que já ninguém se dava ao trabalho de regar, num vaso de plástico, receptáculo de senhas amarrotadas. O desconforto sentia-se no ar pesado e abafado. A atmosfera estava saturada de humidade. O aparelho de ar condicionado estava certamente avariado, já que todas as janelas da sala estavam escancaradas.
Eram nove da manhã. Um casal de idosos e uma mulher cigana esperavam pela sua vez, com ar resignado, do lado oposto da sala, mantendo-se afastados da aragem fresca que entrava pelas janelas. Lançavam-nos amiúde olhares furtivos e entre-olhavam-se com um entendimento tácito e reservado.
O rosto de Clara estava tenso e pálido. Estávamos ambas sentadas, de perna cruzada, frente a frente, olhando-nos também de relance.
Imperava um silêncio denso, contrastando com o ruído do trânsito que se ouvia, longínquo. Não conseguia fixar a minha atenção em coisa alguma, ao meu redor. Cada pensamento que surgia era cadenciadamente afastado, nas suas menores partículas. Recordo ter observado, durante alguns minutos, uma mancha luminosa que se estendia vagarosamente pela relva do jardim, à medida que o sol crescia no horizonte.
Lembro-me de, por momentos e, por pura distracção, me ter absorvido nos ruídos circundantes, tentando identificá-los. Buzina. Travagem. Passos apressados de alguém a subir as escadas. Vozes. Carros a passar. Toques dos telefones. Trinado da passarada. Tentava febrilmente esquecer o aperto que sentia no peito.
O silêncio parecia alongar-se infindavelmente. Recordo, fitando a exuberante mulher sentada à minha frente, ter-me perguntado… Qual de nós será a mais forte?
Agora que já vivi o meu caso, posso rememorá-lo com maior serenidade e contá-lo com simplicidade. Recordo-me do seu início com a nitidez possível, passados tantos anos. Mas talvez seja pertinente contar um pouco sobre mim, antes do meu contacto com Clara.
Sempre fui uma criança adoentada e frágil. Várias vezes tiveram de correr comigo até às Urgências do Hospital. Ainda bebé a minha vida parece ter corrido perigo e a narrativa de minha mãe é que fui milagrosamente salva, em cada ocasião.
Os meus pais não eram nem letrados, nem instruídos, mas antes pobres e humildes, sem sabedoria, nem senso comum; seres refractários ao humor e à boa disposição e avessos ao meu incompreendido entusiasmo criador. Posso afirmar, sem ser injusta, que me instruiu o sistema educativo nacional, me formou a Universidade e que acabei a me educar sozinha, devorando obstinadamente os livros das bibliotecas das cidades onde vivi. A minha infância não foi feliz, nem infeliz em demasia. Como qualquer outra criança, brincava muito e movia-me na escola despreocupadamente. Talvez por ser uma das mais inteligentes, por ser sociável e interessante e travessa ao mesmo tempo e, mais tarde, por ser original na minha forma de pensar e agir autonomamente. Resumindo, fui premiada socialmente por ter uma cabeça bem feita e um pensamento claro, com gavetas bem arrumadas e camadas de sensibilidade artística no contrabalanço. E talvez, finalmente, por ser bonitinha.
Guardei essas memórias de uma Maria rapaz que brincava muito e se divertia de tudo. Da adolescência, porém, surge-me uma impressão, quase comoção, de aflição nauseada. O ambiente familiar ficou péssimo, a vários níveis. O enfrentamento quase diário com a autoridade obtusa de minha mãe caracterizava-se por uma violência psicológica inexcedível. A única opção foi a fuga. Uma fuga desejada, premeditada, programada, se é que algum dia se pode fugir aos seus, ao legado genético, à força aberrante dos laços de sangue.
Saí assim que pude de casa de meus pais. Deixei para trás a cidade onde crescera e o país onde vivera. Fugi dos amigos que havia acumulado. E reapareci virgem, com novas peças de roupa, quase pronta para a descoberta e as suas consequências, em um novo país, em uma nova cidade, desconhecidos.
Rapidamente fiz novas amizades. O meu trato era ameno e fácil. A minha conversação, na língua do país, assaz fluída. Continuava a ser considerada original, ainda mais com o leve sotaque com que pronunciava tudo. Causava simpatia.
Quanto aos meus sonhos, trasladados comigo, e nessa idade tão cheia deles – eram tão banais quanto os de uma jovem qualquer. Estudar. Arranjar um namorado. Terminar o curso. Arranjar emprego. Casar. Ter casa. Ter filhos. Ser feliz. Por esta esmerada ordem de observância. O desejo de ser feliz era naturalmente mais difuso e decorrente do manancial de romances que lera. Era mais um esperar que tudo corresse bem. Aos dezanove anos, nada sabia da existência. Nada sabia das paixões. Nada sabia do amor. Tornei-me nesse domínio e contradomínio, canonicamente volúvel e inconstante.
Passados uns anos, após vários namoros eclécticos e desconchavados, de extensão variável, encontrei o meu futuro marido. Casámos e alugámos um apartamento bonito e bem mobilado. Vivemos alguns anos juntos, sem filhos, e não fui feliz, nem tampouco infeliz. Apesar de o Manuel ter sido sempre bom para mim, o seu temperamento pouco ardente, o seu ditoso hebetismo, produziam em mim um ressentimento profundo e inominável. Ao fim de pouco tempo, já não acreditava inteiramente que pudesse seguir com a minha vida ao seu lado. Habitava-me uma melancolia que escurecia malignamente os meus dias. Sentia uma saudade incompreensível e insana de vidas nunca vividas, sem ele, longe dele. Fugi. Deixei para trás a cidade onde estudara, onde me formara, onde trabalhara, onde me casara. Fugi dos amigos que havia acumulado.
E reapareci ferida, com novas peças de roupa, quase pronta para a redescoberta e as suas consequências, em uma nova cidade, desconhecida. Poder-se-á descrever com exactidão esse período da minha existência com uma senha inequívoca, um cliché. Renovação. Tornei ao estado de graça.
Depressa fiz novas amizades. O meu trato era aprazível e suave, a minha conversação engraçada. Consideravam-me suficientemente excêntrica. Causava inclinação. Mas por essa altura, sentia já, dentro de mim, um nojo existencial difuso e inexprimível. Caminhava sem direcção determinada, os meus passos eram cambaleantes e indecisos e espalhava-se em mim um sentimento de vasta lassidão que contaminava a minha antiga força vital. O desnorteamento era patente.
No entanto, as pessoas à minha volta moviam-se, tranquilamente, com a testa lisa das gelhas do tempo, trilhando, ordeiramente, os caminhos certos, ano após ano, sem outras preocupações visíveis para além daquelas que se explicam muito razoável e comodamente e que se ligam aos únicos acontecimentos susceptíveis de perturbar a linearidade de suas existências ordinárias – nascimentos, casamentos e óbitos.
Eu, na minha zona escura, almejava alcançar tal beatitude. Parecia-me impossível que não sentissem estados mais terríveis e dolorosos. Ou seria eu, que na minha própria cegueira, não conseguia enxergar mais profundamente? Amiúde, inquietava-me essa insatisfação indefinível. Sempre conseguira atribuir um nome concreto a todas as coisas, a todas as emoções e sensações, sempre fora lúcida, dona de uma clarividência penetrante, mas esse vago mal-estar psicológico tive de admiti-lo, a certa altura, acabou por causar-me indisposições físicas. Tentava a todo o custo manter-me nos trilhos largos, à imagem dos que me cercavam - a multidão dos abençoados que não veem, não ouvem e não falam.
Noto agora, com o recuo do tempo, que nunca senti paz, apesar da sua busca incessante; mesmo em raros momentos em que me conseguia serenar, apoderava-se de mim um sentimento de derrota, que ensombrava apaticamente os meus dias. Progressivamente, matei desejos e ambições e fiquei tolhida. Uma cortina espessa isolava-me do mundo e, sem mesmo o saber reconhecer, mergulhava no abismo que me distanciaria de mim mesma.
E assim continuei, durante anos, avançando, como um autómato, rumo à autodestruição, mergulhada de corpo e alma no trabalho. Recorria nessa época, abusiva e maciçamente a antidepressivos e ansiolíticos, que não raras vezes misturava com álcool. E assim continuei, anos a fio até ter um acidente vascular cerebral e quase morrer. As minhas células cerebrais ficaram stressadas, mas acabaram por recuperar, não perdi funções. Foi um susto, como todos à minha volta diziam, uma morte por efectivar. Não pude fugir. Não desta vez.
Durante a convalescença, não manifestei gosto nenhum para nada no mundo. Assemelhava-me a um esqueleto magro e pálido, que metia muita impressão aos outros – palavras de minha mãe. Tudo me irritava excelsamente para além das outras palavras de minha mãe. Passava os dias inerte, esforçando-me, metodicamente, por anular quaisquer pensamentos.
O facto é que ainda que não tivesse planeado assustar ninguém, conseguira-o. Tão profundamente havia mergulhado na depressão que, um dia, me comunicaram que eu iria passar uma temporada em casa de uma amiga da família, já idosa e desprovida de marido e de filhos. Esta me receberia de braços abertos, sedenta de alguma companhia, durante os longos meses de inverno que se aproximavam, naquela cidadezinha à beira mar, com clima ameno e um novo ambiente que me iriam certamente fortificar. Não pude opor-me, nem contrariar, não tinha condições para gerir os aspectos mais triviais da minha vida, quanto mais arranjar forças para apelar.
Lá avancei sem queixas, levada por meu pai que, logo que pôde, me deixou ao cuidado da idosa. Fui, subitamente, atirada para uma liberdade que não pedira, sem nada para fazer, sem ter noção de como utilizar-me, neste contexto ridiculamente estranho.
Talvez tudo tenha começado assim. Eu, extraída da minha órbita ordinária, longe dos meus livros, dos meus trajectos, tão organicamente cadenciados e mais só do que em algum outro momento da minha vida, sem apoio, sem chão. Extraída da superficialidade das rotinas circunscritas em que vivera, sem convicções nenhumas, rodeada apenas por pessoas que aparentemente as possuíam e por isso me sustentavam.
Estava abandonada a mim mesma e passava grande parte do meu tempo, confinada no quarto, trocando apenas frases de circunstância com a velhota diligente, por ocasião de diálogos forçados, à hora das refeições.
Pela correspondência que troquei naquela época com os meus próximos e amigos, e que reli recentemente, noto que um sentimento avassalador de mal-estar generalizado se apoderara de mim. Em todos os mails enviados, me referia ao frio isolamento, à vasta solidão, à busca ansiosa de sentido, à incompreensão, à dor absurda, difusa e indecifrável...
Não consigo, mesmo agora, que faço por me esforçar, lembrar-me do rosto de Clara. As minhas primeiras impressões da sua fisionomia são bem diferentes do conjunto harmonioso dos seus traços a que depois me habituei e absorvi pela convivência. Da Clara primordial não guardei senão uma marca difusa. Sei que houve um momento, naquela sala de estar do hospital, em que ela me sorriu. De vez em quando, irrompe na minha memória um qualquer traço do seu rosto, isolado. Os olhos rasgados e azuis. As sobrancelhas bem desenhadas. As pestanas curvas. O cabelo claro e ondulado. Os lábios finos e pálidos. A Clara subjugava-me de tal forma que, quase me impedia de olhar para ela e muito mais ainda de a ver.
Creio mesmo que a minha angústia posterior se acentuou por essa impossibilidade de recompor a sua imagem. Apenas fiquei com as suas palavras e expressões, os seus trejeitos, a lembrança do seu espírito brilhante. E nas noites de insónia que se seguiram ao seu desaparecimento, na impossibilidade de a reconstituir mentalmente, já exausta pelas fúteis tentativas, aparecia-me qual sombra esmagadora, distante como uma ameaça impalpável.  Só conseguia relembrá-la transportando-me a mim mesma àquele tempo e martirizava-me com acusações, diminuía-me com culpas, desprezava-me, magoava-me irremediavelmente, na tentativa vã de a fixar em mim, de forma indelével.
Tenho, porém, que voltar ao princípio de tudo, pôr alguma ordem nesta narrativa…
Clara sorriu-me meigamente e perguntou-me se, porventura, teria o carregador do telemóvel comigo, uma vez que reparara que tínhamos o mesmo modelo e o dela tinha descarregado totalmente a bateria, naquele preciso momento, em que ela, justamente, esperava uma chamada importante. Eu que, disciplinadamente, carrego comigo toda a parafernália inerente ao bom funcionamento deste equipamento, fiquei surpreendida com o seu à-vontade e senti-me, sem saber porquê, mesmerizada. Mas formalizei-me numa atitude fria e distante; uma indisfarçável impaciência me assolou, naquele instante.
À época, já fazia dois meses que me haviam exilado naquela cidadezinha do litoral, em casa da idosa. Vivia como uma reclusa, contando os dias para o regresso à liberdade. No meu caso tratava-se antes de um regresso à normalidade.
Emprestei o carregador e, quase de imediato, fui chamada para fazer a biopsia mamária - a razão que ali me levara.  Fiz-lhe sinal que ficasse com o carregador enquanto eu era atendida e sugeri-lhe que esperasse por mim na sala para a devolução. Impercetivelmente, a lenta engrenagem da nossa sorte activara-se, sem que eu o suspeitasse, sem que eu pudesse lutar. A Clara era o perigo e para o perigo eu caminhava, cega.
Durante esse período de afastamento forçado, os problemas de saúde ligados à depressão pós AVC pareciam estar a resolver-se com muito repouso e a boa mesa da Dona Idalina, longas caminhadas à beira mar e leituras pacíficas. A idosa cuidava de mim de forma zelosa e atenta, prodigando-me cuidados de qualidade, estritamente centrada em assegurar o meu bem-estar físico e material. Quanto à alma eu mesma cuidava dela, tant bien que mal. Não posso, contudo, escamotear aqui a minha vulnerabilidade, quer física, quer mental.
Sempre que saía à rua, lato sensu, punha-me em guarda, de olhos abertos, vigilante, numa tentativa de me manter a salvo, defendendo-me nem eu sabia bem de quê, procurando não fazer qualquer ruído, nem causar qualquer impacto, regressando, logo que possível, à minha estreita realidade. Sempre que recolhia à quietude da casa e do meu quarto sentia que a realização de tarefas, lá fora, me deixava exangue. Queria somente encher-me de mim mesma, afastando-me da verdade de todos os dias, adormecida, num torpor profundo.
Por tudo isto a minha história é difícil de elucidar. A minha primeira conversa com Clara produziu em mim a inquietação nascida da certeza da iminência dum perigo. É-me difícil perceber até onde foi o meu sentimento por Clara. Houve momentos em que se lhe agregou um terror visceral, mesclado de uma curiosidade forte e vergonhosa, como se dum vício se tratasse.
Terei eu despertado para o mundo nessa altura? Tudo se confundiu, de forma caótica, dentro de mim e eu não saberia agora precisar se o meu desassossego exaltado se devia ao desejo que sentia pela Clara ou à ânsia de procurar um novo mundo até então encoberto. Como ter a certeza? Talvez a Clara tenha sido apenas a ferramenta, talvez o meu destino fosse aquele que acabei por seguir. O destino dos que são largados à solta pelo mundo, sem noção de observância da moralidade, do bem e do mal, talvez mesmo, sem ela, eu me tivesse descoberto um dia. Como saber ao certo?
Nesse dia do encontro primordial, regressei à sala de espera da qual ela se havia ausentado. E agora? pensei. Para reaver o carregador, teria de esperar o seu regresso. Fiquei ali, com o ar engelhado e os olhos turvos que a Clara depois me atribuiu. Era assim que ela me caracterizava sem hesitação. Abalroando-me com palavras e frases acutilantes e indiferentes, que lhe saíam fáceis e céleres, mas que se cravavam, para sempre, em mim como setas envenenadas. 
Recordo ter esperado uma boa meia hora, até a ver irromper na sala à minha procura, com o carregador em riste.  O olhar dela apoderou-se de mim naquela hora. Provavelmente, ela me achava curiosa e estranha e num só ímpeto, ao descermos as escadas, lado a lado, com o passo acertado, me lançou um convite para um café, na esplanada da praia, ali tão próxima, num dia tão surpreendentemente luminoso…
Comecei a admirá-la naquele dia, de uma forma humilde e agradecida. Quanto mais sofria o seu desprezo, mais a considerava superior. Hoje, tudo entendo melhor e tudo lhe perdoo. Mesmo que quisesse não lhe perdoar, não o conseguiria. Conheci ao longo da doença dela, e da minha, a verdadeira Clara. A mulher que não conseguia prender-se, que não conseguia amar ninguém para além de si própria. A Clara hedonista e narcisista. A sua beleza cultuada ao extremo, a vaidade ostentada nas roupas que escolhia, a vida de luxo que sempre levara, as poses ousadas nas fotos, as viagens longínquas que fizera, as conquistas que cedo desprezara, o individualismo exacerbado de que se nutria e que a fazia perder todas as relações mais significativas. Os prazeres imediatos e fragmentados que procurava, com impressionante sofreguidão e despudor. A Clara complexa e volátil, hipermoderna, a mulher ágil e em constante movimento, que vivia na intensidade e na urgência do momento, da satisfação das suas necessidades. A Clara que não se encaixava em modelo algum, que fugia às normas da racionalidade, bela e arrogante. Quando surgiu a doença, tornou-se especialista da sua própria decadência e tacteante continuava à procura da encenação, mas tudo se havia apagado, em seu redor e descobriu-se sem apoio, amarga e irresoluta; bebeu até à última gota o cálice amargo, saturado de tristeza, até ao fim implacável – a sua morte…
Quando tudo se diluiu, apenas na sua memória, restou algum vestígio das vitórias passadas, e do seu poder intrínseco de esgotar as coisas antes de tê-las… E agora sei - eu, que sobrevivi à doença e voltei a ter boa aparência de saúde – por que tentou ela tanto esmagar e humilhar-me.  Porque apenas me invejava. Desejava que também eu sofresse. Eu, ao invés, cuidava dela apesar da minha própria dor e do meu mudo desassossego. Até mesmo o seu egoísmo, a sua azeda malevolência me faziam amá-la.
Hoje, tenho pena de Clara. Depois de me ter sentido desamparada, sem saber o que fazer de mim, não desejando voltar ao meu passado, mas não conseguindo, por covardia, por hábito do conforto, sondar um futuro diferente – percebo o quanto Clara sofria e era infeliz. Os seus sonhos tinham-se esfumado com a doença e não conseguia já situar-se num mundo que reputava medíocre e que, demais a mais, lhe era desconhecido.
Sei agora muito mais sobre os que buscam sentir perpétuamente para se sentirem vivos. Segui eu também esse caminho perigoso, quando Clara despertou em mim esse desejo latente, fazendo-me acordar da minha longa letargia. A minha ansiedade rapidamente voltou. Com Clara, todo o meu ser vibrou e também sei que enquanto isso acontecia em mim, permaneci vigilante e lúcida, apenas observando, quase entediada, o espectáculo que me havia proporcionado a mim mesma…
Agora entendo-o perfeitamente, mas outrora, apenas via a Clara magnânima, soberana e distante, que me hipnotizava. Pouco sabia sobre o amor, apenas sabia que o temia e o procurava. Naquele primeiro encontro, fez-me contar a minha vida. Ao que obedeci, a medo, procurando as palavras para lhe não parecer muito enfadonha. Relatei, obediente e submissa, os factos passados mais pertinentes. Clara ouvia-me com um cigarro nos lábios e um olhar distraído. E recordo que acabou por dizer, com aquele ar só dela, meio zombeteiro, meio cansado, tingido de algum desdém benevolente:
-         Muito bem. Ainda não fizeste nada de jeito na vida…
Ruborizei já fatalmente ferida na alma e calei-me. Mas voltei a procurá-la e a desejá-la secretamente. E como ela sabia humilhar-me. Nunca me revoltei. Nem nesse dia, nem nos dias e semanas seguintes. Nem nos meses que viriam. Para o seu egoísmo, eu era um prazer de dominação e fui sempre uma presa fácil e concordante. Começaram então os passeios estranhos. Os convites nunca realizados. Os encontros fugazes, que pareciam ser sempre os últimos. A presença de Clara, ao meu lado, era como um vórtice que me atraía com a força aspirante de um abismo … O jugo havia sido colocado no meu cachaço e eu fingia, rindo, que era uma brincadeira, mas nada, na realidade, era mais sério para mim. Obedecia, sempre cumpridora, ao seu mais absurdo capricho. Obedecia, não querendo descontentá-la em coisa alguma, mesmo naquilo que ela não me pedia. E pedia-lhe amiúde perdão por não ser capaz de lhe oferecer mais e, porque nada me pedia, mais se avolumava a certeza da minha inferioridade e da distância que se cavava entre nós.
Eu tão simples e primitiva, ao ponto de nunca desejar nada com aquela intensidade ardente que ela punha em tudo. Eu, que vivera inconsciente e inerte… de repente, despertava. Que vida insignificante eu tivera até então. Agora sim… eu renascia. Intensamente, na dor que dormia quieta em mim. Tornei-me nervosa, ansiosa, mas de inteligência aguçada. Quase não dormia, mal comia. Queria que Clara me quisesse, como eu a queria a ela, mas o meu desejo embatia diariamente na sua indiferença por mim, que ela mesma afirmava sempre que a ocasião se apresentava. O meu desânimo era pesado, mas, de novo, aquele seu desprendimento como que me excitava. Aquela inacessibilidade engrandecia-a aos meus olhos. Queria ser subjugada, maltratada, rebaixada. Tudo, absolutamente tudo era melhor do que a indiferença, a distância e o vácuo das palavras. A cada dia temia não suportar a dor de perdê-la.
A ansiedade deixava-me numa tensão extrema, pronta a atirar-me num sorvedouro, pronta a enlouquecer. Vivia numa constante preocupação de atingir os seus pensamentos. Sentia-me grotesca, ridícula. O seu olhar penalizava-me sempre que se colocava em mim. Clara recusava-me na integralidade do meu ser. Nunca consegui humanizá-la.
Quando ambas adoecemos, ela mais gravemente do que eu; movia-me como uma cega, numa espécie de sonolência que apenas conseguia afastar quando nos deslocávamos, juntas, ao hospital onde recebíamos os tratamentos. Vi o estado dela agravar-se e o seu corpo deteriorar-se e cada instante se tornou mais doloroso do que o anterior. A seguir a cada tratamento, caía num estado de lassidão em que sofria menos, mas mesmo nesses períodos, não conseguia sossegar inteiramente. Em momentos de maior lucidez, lembrava-me que Clara nunca me quisera verdadeiramente e que, muito em breve, o seu corpo iria sucumbir à doença que nos corroía.
Há momentos em que tem de se saber como deixar de sentir porque o continuar a sentir se torna demasiado perigoso. Para que um sentimento deixe de nos atormentar, nada há de melhor que esquartejá-lo, dissecá-lo e pô-lo ao sol a secar. Parecia-me uma traição ao meu amor por Clara. Assim que analisava com nitidez e objectividade o meu sentimento, oprimia-me uma saudade dolorosa que me esmagava o peito e atordoava a mente… E temia acima de tudo libertar-me. Queria continuar a sentir-me plena. Ficaria desamparada se o aniquilasse. Afinal, se abolisse Clara da minha vida, perderia o meu reflexo, seria de novo um espelho branco.
Até ao fim Clara exibiu a sua poderosa frieza, o seu desdém irónico e inabalável que tanto me fascinava. Muitas vezes, penso nela e revejo-me a servi-la como uma escrava. Sinto um prazer doloroso ao pensar-me a seus pés. E, confusamente, diante da sua recordação, encolho-me, uno-me a ela, aconchego-a contra mim, no desejo de nos proteger, a ambas contra a doença, contra a morte.
Voltei à minha vida banal e rotineira, depois de entrever, por alguns meses, uma vida ardente, ao lado de Clara. Tenho agora momentos de trégua, e alguma paz; já sem forças, deixei de me debater. Ainda recebo dela beijos sem lábios e estremeço. Não quero empobrecer a sua memória, apenas voltar à minha fonte, à minha matriz, com um último suspiro, serena, de olhos fechados, imobilizando-me para a eternidade. Eu própria tive de buscar de novo a vida, sozinha, através do meu próprio sofrimento.
Dias e meses e anos já correram. O hábito da existência reinstalou-se na minha história. Clara não é mais. Quanto a mim, continuo sozinha, encolhida e indiferente.



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