Conheci a Clara, na sala de espera do serviço de Oncologia do Hospital. Um
espaço decrépito e austero a reforçar o desalento que ali se respirava. A um
canto, uma planta moribunda, que já ninguém se dava ao trabalho de regar, num
vaso de plástico, receptáculo de senhas amarrotadas. O desconforto sentia-se no
ar pesado e abafado. A atmosfera estava saturada de humidade. O aparelho de ar
condicionado estava certamente avariado, já que todas as janelas da sala
estavam escancaradas.
Eram nove da manhã. Um casal de idosos e uma mulher cigana esperavam pela
sua vez, com ar resignado, do lado oposto da sala, mantendo-se afastados da
aragem fresca que entrava pelas janelas. Lançavam-nos amiúde olhares furtivos e
entre-olhavam-se com um entendimento tácito e reservado.
O rosto de Clara estava tenso e pálido. Estávamos ambas sentadas, de perna
cruzada, frente a frente, olhando-nos também de relance.
Imperava um silêncio denso, contrastando com o ruído do trânsito que se
ouvia, longínquo. Não conseguia fixar a minha atenção em coisa alguma, ao meu
redor. Cada pensamento que surgia era cadenciadamente afastado, nas suas
menores partículas. Recordo ter observado, durante alguns minutos, uma mancha
luminosa que se estendia vagarosamente pela relva do jardim, à medida que o sol
crescia no horizonte.
Lembro-me de, por momentos e, por pura distracção, me ter absorvido nos
ruídos circundantes, tentando identificá-los. Buzina. Travagem. Passos
apressados de alguém a subir as escadas. Vozes. Carros a passar. Toques dos telefones. Trinado da
passarada. Tentava febrilmente esquecer o aperto que sentia no peito.
O silêncio parecia alongar-se infindavelmente. Recordo, fitando a exuberante
mulher sentada à minha frente, ter-me perguntado… Qual de nós será a mais
forte?
Agora que já vivi o meu caso, posso rememorá-lo com maior serenidade e contá-lo
com simplicidade. Recordo-me do seu início com a nitidez possível, passados
tantos anos. Mas talvez seja pertinente contar um pouco sobre mim, antes do meu
contacto com Clara.
Sempre fui uma criança adoentada e frágil. Várias vezes tiveram de correr
comigo até às Urgências do Hospital. Ainda bebé a minha vida parece ter corrido
perigo e a narrativa de minha mãe é que fui milagrosamente salva, em cada
ocasião.
Os meus pais não eram nem letrados, nem instruídos, mas antes pobres e humildes,
sem sabedoria, nem senso comum; seres refractários ao humor e à boa disposição e
avessos ao meu incompreendido entusiasmo criador. Posso afirmar, sem ser
injusta, que me instruiu o sistema educativo nacional, me formou a Universidade
e que acabei a me educar sozinha, devorando obstinadamente os livros das
bibliotecas das cidades onde vivi. A minha infância não foi feliz, nem infeliz
em demasia. Como qualquer outra criança, brincava muito e movia-me na escola
despreocupadamente. Talvez por ser uma das mais inteligentes, por ser sociável
e interessante e travessa ao mesmo tempo e, mais tarde, por ser original na
minha forma de pensar e agir autonomamente. Resumindo, fui premiada socialmente
por ter uma cabeça bem feita e um pensamento claro, com gavetas bem arrumadas e
camadas de sensibilidade artística no contrabalanço. E talvez, finalmente, por
ser bonitinha.
Guardei essas memórias de uma Maria rapaz que brincava muito e se divertia
de tudo. Da adolescência, porém, surge-me uma impressão, quase comoção, de
aflição nauseada. O ambiente familiar ficou péssimo, a vários níveis. O enfrentamento
quase diário com a autoridade obtusa de minha mãe caracterizava-se por uma
violência psicológica inexcedível. A única opção foi a fuga. Uma fuga desejada,
premeditada, programada, se é que algum dia se pode fugir aos seus, ao legado
genético, à força aberrante dos laços de sangue.
Saí assim que pude de casa de meus pais. Deixei para trás a cidade onde
crescera e o país onde vivera. Fugi dos amigos que havia acumulado. E reapareci
virgem, com novas peças de roupa, quase pronta para a descoberta e as suas
consequências, em um novo país, em uma nova cidade, desconhecidos.
Rapidamente fiz novas amizades. O meu trato era ameno e fácil. A minha
conversação, na língua do país, assaz fluída. Continuava a ser considerada
original, ainda mais com o leve sotaque com que pronunciava tudo. Causava
simpatia.
Quanto aos meus sonhos, trasladados comigo, e nessa idade tão cheia deles –
eram tão banais quanto os de uma jovem qualquer. Estudar. Arranjar um namorado.
Terminar o curso. Arranjar emprego. Casar. Ter casa. Ter filhos. Ser feliz. Por
esta esmerada ordem de observância. O desejo de ser feliz era naturalmente mais
difuso e decorrente do manancial de romances que lera. Era mais um esperar que
tudo corresse bem. Aos dezanove anos, nada sabia da existência. Nada sabia das
paixões. Nada sabia do amor. Tornei-me nesse domínio e contradomínio,
canonicamente volúvel e inconstante.
Passados uns anos, após vários namoros eclécticos e desconchavados, de extensão
variável, encontrei o meu futuro marido. Casámos e alugámos um apartamento
bonito e bem mobilado. Vivemos alguns anos juntos, sem filhos, e não fui feliz,
nem tampouco infeliz. Apesar de o Manuel ter sido sempre bom para mim, o seu
temperamento pouco ardente, o seu ditoso hebetismo, produziam em mim um
ressentimento profundo e inominável. Ao fim de pouco tempo, já não acreditava
inteiramente que pudesse seguir com a minha vida ao seu lado. Habitava-me uma
melancolia que escurecia malignamente os meus dias. Sentia uma saudade
incompreensível e insana de vidas nunca vividas, sem ele, longe dele. Fugi.
Deixei para trás a cidade onde estudara, onde me formara, onde trabalhara, onde
me casara. Fugi dos amigos que havia acumulado.
E reapareci ferida, com novas peças de roupa, quase pronta para a
redescoberta e as suas consequências, em uma nova cidade, desconhecida.
Poder-se-á descrever com exactidão esse período da minha existência com uma
senha inequívoca, um cliché. Renovação. Tornei ao estado de graça.
Depressa fiz novas amizades. O meu trato era aprazível e suave, a minha
conversação engraçada. Consideravam-me suficientemente excêntrica. Causava inclinação.
Mas por essa altura, sentia já, dentro de mim, um nojo existencial difuso e inexprimível.
Caminhava sem direcção determinada, os meus passos eram cambaleantes e indecisos
e espalhava-se em mim um sentimento de vasta lassidão que contaminava a minha
antiga força vital. O desnorteamento era patente.
No entanto, as pessoas à minha volta moviam-se, tranquilamente, com a testa
lisa das gelhas do tempo, trilhando, ordeiramente, os caminhos certos, ano após
ano, sem outras preocupações visíveis para além daquelas que se explicam muito
razoável e comodamente e que se ligam aos únicos acontecimentos susceptíveis de
perturbar a linearidade de suas existências ordinárias – nascimentos,
casamentos e óbitos.
Eu, na minha zona escura, almejava alcançar tal beatitude. Parecia-me
impossível que não sentissem estados mais terríveis e dolorosos. Ou seria eu,
que na minha própria cegueira, não conseguia enxergar mais profundamente? Amiúde,
inquietava-me essa insatisfação indefinível. Sempre conseguira atribuir um nome
concreto a todas as coisas, a todas as emoções e sensações, sempre fora lúcida,
dona de uma clarividência penetrante, mas esse vago mal-estar psicológico tive
de admiti-lo, a certa altura, acabou por causar-me indisposições físicas.
Tentava a todo o custo manter-me nos trilhos largos, à imagem dos que me
cercavam - a multidão dos abençoados que não veem, não ouvem e não falam.
Noto agora, com o recuo do tempo, que nunca senti paz, apesar da sua busca incessante;
mesmo em raros momentos em que me conseguia serenar, apoderava-se de mim um
sentimento de derrota, que ensombrava apaticamente os meus dias. Progressivamente,
matei desejos e ambições e fiquei tolhida. Uma cortina espessa isolava-me do
mundo e, sem mesmo o saber reconhecer, mergulhava no abismo que me distanciaria
de mim mesma.
E assim continuei, durante anos, avançando, como um autómato, rumo à autodestruição,
mergulhada de corpo e alma no trabalho. Recorria nessa época, abusiva e
maciçamente a antidepressivos e ansiolíticos, que não raras vezes misturava com
álcool. E assim continuei, anos a fio até ter um acidente vascular cerebral e
quase morrer. As minhas células cerebrais ficaram stressadas, mas acabaram por
recuperar, não perdi funções. Foi um susto, como todos à minha volta diziam, uma
morte por efectivar. Não pude fugir. Não desta vez.
Durante a convalescença, não manifestei gosto nenhum para nada no mundo. Assemelhava-me
a um esqueleto magro e pálido, que metia muita impressão aos outros – palavras
de minha mãe. Tudo me irritava excelsamente para além das outras palavras de
minha mãe. Passava os dias inerte, esforçando-me, metodicamente, por anular
quaisquer pensamentos.
O facto é que ainda que não tivesse planeado assustar ninguém,
conseguira-o. Tão profundamente havia mergulhado na depressão que, um dia, me
comunicaram que eu iria passar uma temporada em casa de uma amiga da família, já
idosa e desprovida de marido e de filhos. Esta me receberia de braços abertos,
sedenta de alguma companhia, durante os longos meses de inverno que se
aproximavam, naquela cidadezinha à beira mar, com clima ameno e um novo
ambiente que me iriam certamente fortificar. Não pude opor-me, nem contrariar,
não tinha condições para gerir os aspectos mais triviais da minha vida, quanto
mais arranjar forças para apelar.
Lá avancei sem queixas, levada por meu pai que, logo que pôde, me deixou ao
cuidado da idosa. Fui, subitamente, atirada para uma liberdade que não pedira,
sem nada para fazer, sem ter noção de como utilizar-me, neste contexto ridiculamente
estranho.
Talvez tudo tenha começado assim. Eu, extraída da minha órbita ordinária, longe
dos meus livros, dos meus trajectos, tão organicamente cadenciados e mais só do
que em algum outro momento da minha vida, sem apoio, sem chão. Extraída da
superficialidade das rotinas circunscritas em que vivera, sem convicções
nenhumas, rodeada apenas por pessoas que aparentemente as possuíam e por isso me
sustentavam.
Estava abandonada a mim mesma e passava grande parte do meu tempo, confinada
no quarto, trocando apenas frases de circunstância com a velhota diligente, por
ocasião de diálogos forçados, à hora das refeições.
Pela correspondência que troquei naquela época com os meus próximos e
amigos, e que reli recentemente, noto que um sentimento avassalador de mal-estar
generalizado se apoderara de mim. Em todos os mails enviados, me referia ao frio
isolamento, à vasta solidão, à busca ansiosa de sentido, à incompreensão, à dor
absurda, difusa e indecifrável...
Não consigo, mesmo agora, que faço por me esforçar, lembrar-me do rosto de
Clara. As minhas primeiras impressões da sua fisionomia são bem diferentes do
conjunto harmonioso dos seus traços a que depois me habituei e absorvi pela
convivência. Da Clara primordial não guardei senão uma marca difusa. Sei que houve
um momento, naquela sala de estar do hospital, em que ela me sorriu. De vez em
quando, irrompe na minha memória um qualquer traço do seu rosto, isolado. Os
olhos rasgados e azuis. As sobrancelhas bem desenhadas. As pestanas curvas. O
cabelo claro e ondulado. Os lábios finos e pálidos. A Clara subjugava-me de tal forma que, quase me
impedia de olhar para ela e muito mais ainda de a ver.
Creio mesmo que a minha angústia posterior se acentuou por essa
impossibilidade de recompor a sua imagem. Apenas fiquei com as suas palavras e
expressões, os seus trejeitos, a lembrança do seu espírito brilhante. E nas
noites de insónia que se seguiram ao seu desaparecimento, na impossibilidade de
a reconstituir mentalmente, já exausta pelas fúteis tentativas, aparecia-me
qual sombra esmagadora, distante como uma ameaça impalpável. Só conseguia relembrá-la transportando-me a
mim mesma àquele tempo e martirizava-me com acusações, diminuía-me com culpas,
desprezava-me, magoava-me irremediavelmente, na tentativa vã de a fixar em mim,
de forma indelével.
Tenho, porém, que voltar ao princípio de tudo, pôr alguma ordem nesta
narrativa…
Clara sorriu-me meigamente e perguntou-me se, porventura, teria o
carregador do telemóvel comigo, uma vez que reparara que tínhamos o mesmo modelo
e o dela tinha descarregado totalmente a bateria, naquele preciso momento, em
que ela, justamente, esperava uma chamada importante. Eu que, disciplinadamente,
carrego comigo toda a parafernália inerente ao bom funcionamento deste
equipamento, fiquei surpreendida com o seu à-vontade e senti-me, sem saber
porquê, mesmerizada. Mas formalizei-me numa atitude fria e distante; uma
indisfarçável impaciência me assolou, naquele instante.
À época, já fazia dois meses que me haviam exilado naquela cidadezinha do
litoral, em casa da idosa. Vivia como uma reclusa, contando os dias para o
regresso à liberdade. No meu caso tratava-se antes de um regresso à
normalidade.
Emprestei o carregador e, quase de imediato, fui chamada para fazer a biopsia
mamária - a razão que ali me levara.
Fiz-lhe sinal que ficasse com o carregador enquanto eu era atendida e
sugeri-lhe que esperasse por mim na sala para a devolução. Impercetivelmente, a
lenta engrenagem da nossa sorte activara-se, sem que eu o suspeitasse, sem que
eu pudesse lutar. A Clara era o perigo e para o perigo eu caminhava, cega.
Durante esse período de afastamento forçado, os problemas de saúde ligados
à depressão pós AVC pareciam estar a resolver-se com muito repouso e a boa mesa
da Dona Idalina, longas caminhadas à beira mar e leituras pacíficas. A idosa
cuidava de mim de forma zelosa e atenta, prodigando-me cuidados de qualidade,
estritamente centrada em assegurar o meu bem-estar físico e material. Quanto à
alma eu mesma cuidava dela, tant bien que mal. Não posso, contudo,
escamotear aqui a minha vulnerabilidade, quer física, quer mental.
Sempre que saía à rua, lato sensu, punha-me em guarda, de olhos
abertos, vigilante, numa tentativa de me manter a salvo, defendendo-me nem eu
sabia bem de quê, procurando não fazer qualquer ruído, nem causar qualquer
impacto, regressando, logo que possível, à minha estreita realidade. Sempre que
recolhia à quietude da casa e do meu quarto sentia que a realização de tarefas,
lá fora, me deixava exangue. Queria somente encher-me de mim mesma,
afastando-me da verdade de todos os dias, adormecida, num torpor profundo.
Por tudo isto a minha história é difícil de elucidar. A minha primeira
conversa com Clara produziu em mim a inquietação nascida da certeza da
iminência dum perigo. É-me difícil perceber até onde foi o meu sentimento por
Clara. Houve momentos em que se lhe agregou um terror visceral, mesclado de uma
curiosidade forte e vergonhosa, como se dum vício se tratasse.
Terei eu despertado para o mundo nessa altura? Tudo se confundiu, de forma
caótica, dentro de mim e eu não saberia agora precisar se o meu desassossego
exaltado se devia ao desejo que sentia pela Clara ou à ânsia de procurar um
novo mundo até então encoberto. Como ter a certeza? Talvez a Clara tenha sido
apenas a ferramenta, talvez o meu destino fosse aquele que acabei por seguir. O
destino dos que são largados à solta pelo mundo, sem noção de observância da
moralidade, do bem e do mal, talvez mesmo, sem ela, eu me tivesse descoberto um
dia. Como saber ao certo?
Nesse dia do encontro primordial, regressei à sala de espera da qual ela se
havia ausentado. E agora? pensei. Para reaver o carregador, teria de esperar o
seu regresso. Fiquei ali, com o ar engelhado e os olhos turvos que a Clara
depois me atribuiu. Era assim que ela me caracterizava sem hesitação. Abalroando-me
com palavras e frases acutilantes e indiferentes, que lhe saíam fáceis e céleres,
mas que se cravavam, para sempre, em mim como setas envenenadas.
Recordo ter esperado uma boa meia hora, até a ver irromper na sala à minha
procura, com o carregador em riste. O
olhar dela apoderou-se de mim naquela hora. Provavelmente, ela me achava
curiosa e estranha e num só ímpeto, ao descermos as escadas, lado a lado, com o
passo acertado, me lançou um convite para um café, na esplanada da praia, ali
tão próxima, num dia tão surpreendentemente luminoso…
Comecei a admirá-la naquele dia, de uma forma humilde e agradecida. Quanto
mais sofria o seu desprezo, mais a considerava superior. Hoje, tudo entendo
melhor e tudo lhe perdoo. Mesmo que quisesse não lhe perdoar, não o conseguiria.
Conheci ao longo da doença dela, e da minha, a verdadeira Clara. A mulher que
não conseguia prender-se, que não conseguia amar ninguém para além de si
própria. A Clara hedonista e narcisista. A sua beleza cultuada ao extremo, a
vaidade ostentada nas roupas que escolhia, a vida de luxo que sempre levara, as
poses ousadas nas fotos, as viagens longínquas que fizera, as conquistas que
cedo desprezara, o individualismo exacerbado de que se nutria e que a fazia
perder todas as relações mais significativas. Os prazeres imediatos e
fragmentados que procurava, com impressionante sofreguidão e despudor. A Clara
complexa e volátil, hipermoderna, a mulher ágil e em constante movimento, que
vivia na intensidade e na urgência do momento, da satisfação das suas
necessidades. A Clara que não se encaixava em modelo algum, que fugia às normas
da racionalidade, bela e arrogante. Quando surgiu a doença, tornou-se
especialista da sua própria decadência e tacteante continuava à procura da
encenação, mas tudo se havia apagado, em seu redor e descobriu-se sem apoio,
amarga e irresoluta; bebeu até à última gota o cálice amargo, saturado de
tristeza, até ao fim implacável – a sua morte…
Quando tudo se diluiu, apenas na sua memória, restou algum vestígio das
vitórias passadas, e do seu poder intrínseco de esgotar as coisas antes de
tê-las… E agora sei - eu, que sobrevivi à doença e voltei a ter boa aparência
de saúde – por que tentou ela tanto esmagar e humilhar-me. Porque apenas me invejava. Desejava que também
eu sofresse. Eu, ao invés, cuidava dela apesar da minha própria dor e do meu
mudo desassossego. Até mesmo o seu egoísmo, a sua azeda malevolência me faziam
amá-la.
Hoje, tenho pena de Clara. Depois de me ter sentido desamparada, sem saber
o que fazer de mim, não desejando voltar ao meu passado, mas não conseguindo,
por covardia, por hábito do conforto, sondar um futuro diferente – percebo o
quanto Clara sofria e era infeliz. Os seus sonhos tinham-se esfumado com a
doença e não conseguia já situar-se num mundo que reputava medíocre e que,
demais a mais, lhe era desconhecido.
Sei agora muito mais sobre os que buscam sentir perpétuamente para se
sentirem vivos. Segui eu também esse caminho perigoso, quando Clara despertou
em mim esse desejo latente, fazendo-me acordar da minha longa letargia. A minha
ansiedade rapidamente voltou. Com Clara, todo o meu ser vibrou e também sei que
enquanto isso acontecia em mim, permaneci vigilante e lúcida, apenas observando,
quase entediada, o espectáculo que me havia proporcionado a mim mesma…
Agora entendo-o perfeitamente, mas outrora, apenas via a Clara magnânima,
soberana e distante, que me hipnotizava. Pouco sabia sobre o amor, apenas sabia
que o temia e o procurava. Naquele primeiro encontro, fez-me contar a minha
vida. Ao que obedeci, a medo, procurando as palavras para lhe não parecer muito
enfadonha. Relatei, obediente e submissa, os factos passados mais pertinentes.
Clara ouvia-me com um cigarro nos lábios e um olhar distraído. E recordo que
acabou por dizer, com aquele ar só dela, meio zombeteiro, meio cansado, tingido
de algum desdém benevolente:
-
Muito bem.
Ainda não fizeste nada de jeito na vida…
Ruborizei já fatalmente ferida na alma e calei-me. Mas voltei a procurá-la
e a desejá-la secretamente. E como ela sabia humilhar-me. Nunca me revoltei.
Nem nesse dia, nem nos dias e semanas seguintes. Nem nos meses que viriam. Para
o seu egoísmo, eu era um prazer de dominação e fui sempre uma presa fácil e
concordante. Começaram então os passeios estranhos. Os convites nunca
realizados. Os encontros fugazes, que pareciam ser sempre os últimos. A
presença de Clara, ao meu lado, era como um vórtice que me atraía com a força
aspirante de um abismo … O jugo havia sido colocado no meu cachaço e eu fingia,
rindo, que era uma brincadeira, mas nada, na realidade, era mais sério para
mim. Obedecia, sempre cumpridora, ao seu mais absurdo capricho. Obedecia, não
querendo descontentá-la em coisa alguma, mesmo naquilo que ela não me pedia. E
pedia-lhe amiúde perdão por não ser capaz de lhe oferecer mais e, porque nada
me pedia, mais se avolumava a certeza da minha inferioridade e da distância que
se cavava entre nós.
Eu tão simples e primitiva, ao ponto de nunca desejar nada com aquela
intensidade ardente que ela punha em tudo. Eu, que vivera inconsciente e
inerte… de repente, despertava. Que vida insignificante eu tivera até então.
Agora sim… eu renascia. Intensamente, na dor que dormia quieta em mim.
Tornei-me nervosa, ansiosa, mas de inteligência aguçada. Quase não dormia, mal
comia. Queria que Clara me quisesse, como eu a queria a ela, mas o meu desejo
embatia diariamente na sua indiferença por mim, que ela mesma afirmava sempre
que a ocasião se apresentava. O meu desânimo era pesado, mas, de novo, aquele
seu desprendimento como que me excitava. Aquela inacessibilidade engrandecia-a
aos meus olhos. Queria ser subjugada, maltratada, rebaixada. Tudo, absolutamente
tudo era melhor do que a indiferença, a distância e o vácuo das palavras. A
cada dia temia não suportar a dor de perdê-la.
A ansiedade deixava-me numa tensão extrema, pronta a atirar-me num
sorvedouro, pronta a enlouquecer. Vivia numa constante preocupação de atingir
os seus pensamentos. Sentia-me grotesca, ridícula. O seu olhar penalizava-me
sempre que se colocava em mim. Clara recusava-me na integralidade do meu ser.
Nunca consegui humanizá-la.
Quando ambas adoecemos, ela mais gravemente do que eu; movia-me como uma
cega, numa espécie de sonolência que apenas conseguia afastar quando nos
deslocávamos, juntas, ao hospital onde recebíamos os tratamentos. Vi o estado
dela agravar-se e o seu corpo deteriorar-se e cada instante se tornou mais
doloroso do que o anterior. A seguir a cada tratamento, caía num estado de
lassidão em que sofria menos, mas mesmo nesses períodos, não conseguia sossegar
inteiramente. Em momentos de maior lucidez, lembrava-me que Clara nunca me
quisera verdadeiramente e que, muito em breve, o seu corpo iria sucumbir à
doença que nos corroía.
Há momentos em que tem de se saber como deixar de sentir porque o continuar
a sentir se torna demasiado perigoso. Para que um sentimento deixe de nos
atormentar, nada há de melhor que esquartejá-lo, dissecá-lo e pô-lo ao sol a
secar. Parecia-me uma traição ao meu amor por Clara. Assim que analisava com
nitidez e objectividade o meu sentimento, oprimia-me uma saudade dolorosa que me
esmagava o peito e atordoava a mente… E temia acima de tudo libertar-me. Queria
continuar a sentir-me plena. Ficaria desamparada se o aniquilasse. Afinal, se
abolisse Clara da minha vida, perderia o meu reflexo, seria de novo um espelho
branco.
Até ao fim Clara exibiu a sua poderosa frieza, o seu desdém irónico e
inabalável que tanto me fascinava. Muitas vezes, penso nela e revejo-me a
servi-la como uma escrava. Sinto um prazer doloroso ao pensar-me a seus pés. E,
confusamente, diante da sua recordação, encolho-me, uno-me a ela, aconchego-a
contra mim, no desejo de nos proteger, a ambas contra a doença, contra a morte.
Voltei à minha vida banal e rotineira, depois de entrever, por alguns meses,
uma vida ardente, ao lado de Clara. Tenho agora momentos de trégua, e alguma
paz; já sem forças, deixei de me debater. Ainda recebo dela beijos sem lábios e
estremeço. Não quero empobrecer a sua memória, apenas voltar à minha fonte, à
minha matriz, com um último suspiro, serena, de olhos fechados, imobilizando-me
para a eternidade. Eu própria tive de buscar de novo a vida, sozinha, através
do meu próprio sofrimento.
Dias e meses e anos já correram. O hábito da existência reinstalou-se na
minha história. Clara não é mais. Quanto a mim, continuo sozinha, encolhida e
indiferente.
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