mardi 3 mars 2020

FUGA




As particularizações são sempre importantes. Por isso, começaria por afirmar que Manuela, entre todas as mulheres que conheci na época, era sofisticada e elegante. Glamourosa! Era essa a qualidade indefinível que a investia de uma aura misteriosa aos olhos de César.
A partir do seu primeiro encontro, em Madrid, numa Conferência Internacional sobre a História do Jornalismo desde o início do século XX ou algo do género e igualmente entediante, nos idos dos gloriosos anos setenta, Manuela exerceu sobre ele, esse seu poder mágico.
Alta e morena, ataviada com uns óculos escuros de diva, que lhe devoravam metade do rosto e ostentando uma mini saia que lhe deixava a descoberto umas magníficas pernas bronzeadas; foi assim que Manuela nos aparecera de supetão, sentando-se ao nosso lado, no anfiteatro (cuja localização se me varreu com o passar dos anos) onde se desenrolava o evento.
César referiu mais tarde, que se sentira enfeitiçado nesse preciso instante, à falta de melhor palavra. Um feitiço que não mais iria cessar, julgávamos nós, até ao dia em que cessou e em que nos vieram informar, mesmo a meio de uma reunião da redação do jornal, que César tinha posto fim à sua vida.
Manuela inspirava-lhe um amor magnético. A experiência sentimental que falta a um homem maduro; ainda que num sobressalto, ele tivesse pressentido e nos tivesse confessado que pressentia que aquele glamour era perigoso.
No primeiro encontro, que marcara com ela, num café madrileno, não longe do Museu do Prado, que em seguida visitariam, César voltara a sentir-se mesmerizado pelos olhos, a boca, o corpo de Manuela. Aquilo era bruxaria. É verdade, que ao conhecer Manuela, também eu senti esse fabuloso apelo magnético, esse encanto exuberante, essa aura que emanava da sua mera existência física, da sua única presença, da intensa influência do seu perfil. Nunca Manuela resplandecera como naquele ano de setenta e sete em que acabara de completar vinte e sete anos. À época, era uma jovem jornalista que se esforçava de forma perseverante e voluntariosa por fazer carreira, em um mundo eminentemente sexista, machista e discriminatório, onde ser bonita constituía mais um handicap do que um trunfo.
Era a filha do meio de uma família de origens modestas, vinda estudar para Lisboa após ter deixado para trás a pequena vila do Alentejo natal, onde não se afigurava poder continuar a viver sem perspetivas de futuro. Cursara Sociologia, com grande sacrifício económico dos progenitores, e dera os seus primeiros passos, ainda balbuciantes, no meio jornalístico, que desde cedo a havia atraído.
Cuidava minuciosamente da sua aparência e pode dizer-se que era uma mulher que, nessa altura, se elevava acima da média pelo seu refinamento elegante e inteligência. Ela era muito diferente, de qualquer forma, das outras mulheres, ora namoradas intermitentes, ora amantes, com quem César se tinha relacionado e que nunca o haviam surpreendido, nem inquietado no grau em que Manuela o conseguira. Este era, na sua vida, o encontro amoroso primordial.
Lembro-me de ele me ter confessado, em variadíssimas ocasiões, quando no final de um dia de trabalho íamos beber uns copos onde calhasse, que apesar de se saber um homem eminentemente pragmático e articulado, se sentia assoberbado por um indefinível e subversivo sentimento de inquietação.
Manuela tinha esse poder irresistível de fascinação feminina; essa capacidade de encantar que só algumas mulheres possuem intrinsecamente, esse sex appeal irrepressível. Apesar da sua juventude – César já se aproximava dos quarenta –, Manuela revelava uma maturidade confiante e por todas essas razões, sentiu por ela uma fervorosa atração, uma imediata paixão e não mais teve paz, segundo palavras suas. A influência empolgante de Manuela ecoaria durante toda a sua existência.
Manuela acabara por ir viver em Madrid, no apartamento de César. Tornara-se rapidamente sua esposa e desse matrimónio nascera uma filha – Clara. Ainda continuou durante algum tempo a escrever, como free lance, alguns artigos para uma revista feminina em voga, mas com o tempo, acabaria por se metamorfosear numa dona de casa comum, vivendo uma vida ordinária, inexplicavelmente desprovida de qualquer elemento de glamour.  O seu capital intelectual e o seu potencial sexual envelheceram de modo precoce; o casamento e a maternidade cedo encurtaram o seu horizonte sonhado e, inevitavelmente, o matrimónio começara a fracassar após alguns anos de uma ligação gloriosa.
César tornara-se, com os anos, distante e fugidio, voluntariamente afastado de casa durante semanas de reportagens diversas no estrangeiro. A filha – Clara, era a exclusiva responsabilidade de Manuela e tornara-se, na adolescência, quase insuportavelmente temperamental e egoísta, muito parecida com César, quer nos traços físicos, quer nos psicológicos. Era em termos rigorosos, a versão feminina do pai.  Mãe e filha não se compreendiam, não se entendiam, não se gostavam.  Por isso, Manuela viveu a saída de casa da sua filha única, mais como um alívio do que outra coisa qualquer.
Manuela outrora tão bela e sedutora, via agora o seu corpo encher-se de gordura e engelhar-se de rugas. Sempre que nos encontrávamos, nas alturas mais festivas do ano, nos jantares organizados por uns e por outros, combinados em restaurantes, e também por vezes nas casas de uns e de outros, tocava nesse tema candente que era a antevisão horrorífica do seu declínio físico e mental, esmiuçava friamente todos os trâmites futuros da velhice, da doença e da morte e a tal ponto me conseguia ofuscar que me sentia, certas vezes,  fisicamente estorvada.
O casamento – confessava, fora um ultraje feito a ela própria, o entrave maior à sua realização e desenvolvimento pessoal. Sentia-se demasiado penalizada com as barreiras que havia levantado à sua volta, as tramas que havia urdido e as teias em que se deixara prender. Culpava invariavelmente César; por causa dele, não havia vivido a vida com que sonhara ainda adolescente, e não vislumbrava nenhuma realização meritória de que se pudesse orgulhar. Levara até então uma vida burguesa convencional, tivera de fazer escolhas práticas que a haviam levado ao abandono da carreira, não tinha preocupações financeiras é certo, mas confrontava-se diariamente com o seu desespero e aquilo que designava como a falta de valor próprio e começara a beber. A sua vida redundava num fracasso homérico. Temia angustiadamente cair na depressão e na loucura.
A mulher outrora turbulenta e efervescente tornara-se silenciosa porque – palavras dela – tinha sido silenciada, esmagada pelo carisma e pela personalidade de César; um homem com uma figura imponente, mas também supremamente egoísta e narcisista. E parecia não lhe perdoar por a ter amputado da sua essência. O enérgico feminismo de Manuela nos seus tempos de estudante e de jovem mulher dera lugar à passividade e conformismo. Passara a viver simplesmente a sua vida ao lado de César, com o máximo de dignidade possível. Mas aos seus olhos, nada disso havia valido o esforço, não representava nada mais do que um retumbante fracasso pessoal, uma ferida íntima. Vivia reclusa e no silêncio. E agora, agregava-se ao ressentimento uma permanente irritação, ainda que muda, causada pela mesquinha mediocridade da vida que levava ao lado de César.
Manuela dizia, já nem ter palavras para exprimir o que sentia. Na maior parte do tempo, já nem sentia nada e por isso, até podia estar morta. Deixara de ser uma mulher moderna e ativa, e transformara-se numa mulher que só vivia sonhando. Uma mulher fora do seu tempo, à margem, presa num corpo decadente e mudo também ele. Havia deixado passar os anos, nesse torpor límbico de funda confusão e olhava para trás com algum assombro e estupefação. Sentia-se um farrapo humano. Havia vivido anos a fio no reduto do brilhantismo de seu marido, na esfera tentacular da tradição familiar. Sentia-se bloqueada, presa, encurralada frente à indiferença total do mundo em seu redor.
Todos estes sentimentos ressoavam nela, há alguns meses, com mais vigor; agora que Clara havia saído de casa e do país. E Manuela só tinha uma de duas opções, ou acabava com a vida, o que aconteceria certamente se assim continuasse a viver, ou punha um término a essa alienação da sua liberdade, a essa tácita aceitação da sua submissão a César. Sentia que não poderia seguir aceitando os pequenos e grandes dramas que este urdia para ela, não suportava mais o tédio avassalador que se instalara entre eles, não toleraria a anulação do seu ser por mais tempo, não aguentaria por muito mais tempo esta paz podre.
Grandes revoluções exigem pequenos passos que se agigantam! – ouvi eu da boca dela, numa dessas noites. Soube mais tarde que voltara a trabalhar sem que César fosse posto a par. As dificuldades para quem estivera tanto tempo fora do mercado laboral eram óbvias, mas acabou por ultrapassar esse embaraço. Uma amiga comum contou-me, recentemente, que Manuela se mudara e que se sentia agora mais apaziguada com a vida, que havia finalmente conjurado a solidão e a depressão. Abandonara o apartamento de César onde vivera, ao seu lado, durante quase um quarto de século, numa altura em que este estivera fora durante um mês. Alugara um bonito apartamento mobilado em Lisboa, no Chiado, o seu bairro lisboeta preferido. Clara – a sua filha, havia ficado gravemente doente e César sofria de graves problemas mentais desde a separação, mas Manuela tudo enfrentava com renovada energia.
Alguns meses depois, recebi dois dias antes do Natal, uma carta de Manuela, onde me contava tudo. Os detalhes particularmente sombrios da sua existência atual e da luta contínua que travava para não perder pé.
César tinha sido internado num hospital psiquiátrico e quando regressara a casa, não suportando a dor do afastamento de sua mulher, tinha caído de novo numa depressão profunda e havia posto fim à vida com um tiro na cabeça. A seguir ao funeral de César, Clara informara sua mãe que sofria de uma doença fatal da qual se sabia agora que não recuperaria.
Por covardia e inércia não respondi ao mail de Manuela. Nenhum dos seus amigos voltou a ter notícias dela.

2 commentaires:

João Menéres a dit…

Só para saberes que li :

" Termia angustiadamente cair na depressão e na loucura. "

Um irritante r a mais.

Fica um beijo amigo.

ma grande folle de soeur a dit…

Obrigada! Corrijo. Abraço