mercredi 31 janvier 2018
Voragem
Há doze anos que a Irene sofre de depressão crónica. Já teve vários esgotamentos nervosos que a transformaram numa espécie de esqueleto ambulante. Consegue passar meses sem dormir e sem comer. Tudo por causa da grande tragédia romântica que lhe roubou a vida sonhada e idealizada desde menininha.
Há doze anos que conheceu o Fernando. Era já na altura uma mulher de idade madura, ainda que fosse, absolutamente virgem e inexperiente nas coisas do amor; romanticamente imersa num mundo de fantasias digno da literatura de cordel.
Manifestamente, mal o conheceu foi atingida por um raio. O momento de glória de um Cupido malicioso e perverso.
Pelos vistos, durante um tempo houve correspondência de sentimentos e de aspirações. Houve arrebatamento mútuo. Houve namoro. Houve desfloramento. Houve promessa de casamento. Era o sonho de uma vida a dois, repleta das bênçãos caseiras e das concretizações matrimoniais enjoativamente idênticas às da sua tradicionalista e ultraconservadora família. Irene que era a mais velha das quatro filhas do Sr. Paços Trindade, empresário de sucesso da pequena vila nortenha, onde florescia há gerações o negócio da família, ia finalmente subir ao altar, depois de ter visto as suas irmãs mais novas casar e constituir família e depois de se ter assustado, de cada vez, pensando que ia ficar para tia .
Infelizmente, o idílio romântico foi sol de pouca dura. O moço fartou-se ou fartou-o ela. Aborreceu-o a ideia do casório. O menino de boas famílias queria ir estudar para o estrangeirio. Queria espaço. Queria liberdade. Queria margem e latitude. Ela não queria abrir mão dele. Não entendia. Não lhe fazia sentido. De repente, caíra num poço de amargura. Chorava todas as noites. Mal comia. Perdia a razão a olhos vistos. Tinha ideações suicidas que verbalizava de forma dolorosa e constante.
Com o passar dos anos, tornou-se numa pessoa irritadiça e amarga. Nunca o deixou partir. Não abriu mão dele. Vitimizou-se e perseguiu-o aceradamente onde quer que ele estivesse. Foi parar a uma casa de repouso após um esgotamento nervoso que a incapacitou durante meses a fio.
Ontem, almoçámos e pareceu-me que estava melhor. Tinha um aspecto mais tranquilo, mais sereno. Enganei-me. A calma era apenas aparente. Assim que lhe dei uma aberta, deixou de falar de trivialidades e entrou de cabeça na voragem. Começou, com a agitação nervosa e o desequilíbrio próprio dos doentes mentais, a fazer queixas sistemáticas e obsessivas de cada membro da sua família que a trata como se tivesse cinco anos de idade, das suas irmãs que lhe falam com quatro pedras na mão e a machucam com as suas ordens imperiosas e os seus discursos motivadores.
E claro, veio sub-repticiamente à tona o monotema predilecto, volvida mais de uma década - a sua doença de amor, o roubo da sua felicidade, o enterro do seu corpo em vida, a perda da sua alma gémea, o fim da sua vida. Há três meses, soube por uma amiga comum que o rapaz se casara com uma beldade estrangeira. Para cúmulo mandou-lhe uma fotografia do evento na qual - rapaz demoníaco - lhe faz uma careta com a língua de fora.
A desamparada Irene continua tolhida.
mercredi 17 janvier 2018
A hora de Verão
Rafaella é
violoncelista. Alfredo é um pianista virtuoso. Ela diz-se a mulher mais feliz da
Terra quando ele a acorda, todas as manhãs, ao som de Brahms ou Mozart ou
Chopin.
Nem sempre as
suas vidas estiveram unidas. Alfredo apaixonou-se perdidamente por Rafaella ,
ao ponto de deixar mulher e filho. Na altura, era seu professor de piano e
tiveram um caso tórrido, mas Rafaella tinha apenas vinte anos. Era uma jovem bela
e ambiciosa pouco interessada em entregar-se de corpo e alma a um homem mais
velho e tão pressurosamente desesperado. As suas vidas seguiram o seu rumo.
Ela casou com um
homem insignificante, foi inexpressivamente infeliz e descasou uns anos mais
tarde. Ele casou uma segunda vez e separou-se novamente, anos depois. Quando Rafaella
o deixara, trinta anos antes, ele quase morrera, vítima de enfarte. O rumo da
existência porém é tortuoso e manhoso.
Numa bela manhã
de verão, numa altura da vida de Rafaella em que esta se sentia particularmente
só, ouviu na rádio uma soberba sonata tocada por Alfredo e teve um desejo
irracional de o rever. Estranhamente, Alfredo estava para casar uma terceira
vez. Mas em vez de casar com a sua então namorada, casou com Rafaella. Vivem,
actualmente, em Veneza, num apartamento virado para o Duomo há mais de vinte e
cinco anos. Ela é hoje ainda uma bela mulher cheia de vivacidade e ele, um
octogenário, com muito vigor e brilho. São felizes.
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