mercredi 30 novembre 2022

lundi 28 novembre 2022

"Segue outra historia.

Wakigori é um districto da provincia de Iyo, na ilha de Shikoku. Ha em Wakigori uma velhissima e mui famosa cerejeira, chamada Jiu-roku-zakura - a cerejeira do XVI dia do anno. - Vem-lhe a denominação da curiosa circumstancia de florir durante um dia só de cada anno, que é o decimo sexto do primeiro mez lunar, antigo calendario. Ora tal quadra é a dos grandes frios, das nevadas repetidas; e as cerejeiras florescem no Japão, como é sabido, em plena primavera, amena e cariciosa. Mas a Jiu-roku-zakura  floresce com uma vida que não é, ou antes, que não foi originalmente a sua propria, pois se contém n'aquella arvore o espirito de um homem.

Tal homem foi um samurai da provincia de Iyo, e no jardim da sua casa vegetava a arvore de que fallo, cujas flores desabrochavam na temporada habitual, isto é, de março a abril. Era uma cerejeira com seculos de existencia, frondosa, de amplo e nodoso tronco; á sombra d'ella, o samurai brincára muitas vezes durante a sua infancia; como tambem á mesma sombra haviam brincado seus paes e seus avós, e ainda por certo mais remotos ascendentes. Elle proprio, o samurai, attingira uma avançada idade; e já seus filhos, já seus netos, á sombra da mesma cerejeira, haviam passado longas horas da sua meninice; e todos - elle, seus paes, seus avós, seus bisavós, seus filhos e seus netos - se tinham deleitado, durante uma longa sucessão de primaveras, na contemplação das deliciosas florescencias da arvore companheira. O velho samurai a nada queria tanto n'este mundo como áquella cerejeira familial!...

Ora, em certo estio, as folhas mirraram-se e cahiram e morreu a cerejeira. Uma catastrophe!... A dor do samurai foi cruciante e a toda a gente fazia dó vel-o penar. Visinhos carinhosos trouxeram-lhe então para o jardim uma outra cerejeira, viçosa, florescente, imaginando por este modo consolal-o. O velho agradeceu, promettendo varrer do coração suas tristezas; mas manda a verdade que se diga que o mal de que soffria era incuravel. Um dia, por signal o decimo sexto do primeiro mez do anno, ocorreu-lhe ao pensamento uma maneira de salvar ainda da morte a sua querida arvore. Elle sabia que uma pessoa póde dar a propria vida em beneficio de uma outra, mesmo de um animal, mesmo de uma planta, quando os deuses propiciem esta troca. Tomada uma firme decisão, dirigiu-se sósinho ao seu jardim, curvou-se reverente diante do tronco resequido e proferiu estas palavras : - «Digna-te continuar a florescer, pois vou morrer por ti ...» - Vestindo-se então todo de branco, como recommenda a pragmatica, e servindo-se das práticas do estylo, cravou no proprio ventre a sua espada de guerreiro, baqueando sob o sólo, banhado n'um mar de sangue... O espirito do samurai entrou na cerejeira, que n'aquelle mesmo instante se engalanou de flores. E continua florindo em cada anno, no decimo sexto dia so primeiro mez lunar, na quadra das nevadas ...».


in Carta do Japão, Vol. III, de Wenceslau de Moraes

A caminho da Zurela


 

dimanche 27 novembre 2022

    "Relanceando os diversos curiosos aspectos que nos offerece a vida social japoneza, depara-se-nos uma condição profundamente interessante, commum aos dous sexos, posto que mais frequente no homem, a qual é conhecida pela palavra indigena inkyo. O termo quer dizer aproximadamente: - acção de retirar-se á vida privada, de abandonar os negocios de sua casa; aquelle que assim se retira e leva uma vida privada. Effectivamente, desde remotas éras até hoje, posto que agora, com a quadra afanosa da evolução nipponica, não tanto em vigor, tem sido uso que o chefe de familia, quando attinge uma idade de 50 annos ou cerca d'elles, se constitua inkyo, transferindo a direcção da casa e do negocio ao seu legitimo representante, em regra o filho mais velho, para viver em pachorrenta tranquilidade o resto dos seus dias. Este repouso patriarchal teem sido muito commentado em escriptos europeus, sendo geralmente reconhecido como uma calamidade, pois representa a paralysia antecipada das energias individuais, n'uma quadra ainda muito efficiente da existencia; d'aqui a mingua da produção, conseguintemente da riqueza, da familia em particular e do Estado em geral. Talvez tenham muita razão os sabios economistas do Occidente; mas, para um paiz de poetas e de artistas, como é este, para o qual o dinheiro está bem longe de ser tudo, eu encontro no inkyo uma delicadissima instituição social - ou antes anti-social - digna de amorosa estima e do reconhecimento da patria nipponica. [...]

    Com respeito ao inkyo, vive afastado do bullicio dos grandes centros [...] a sentimentalidade apura-se-lhe; as suas aptidões pacientes exercem-se affectuosamente em mil graciosidades indigenas, emancipadas da rotina da vida, durante a paz dos longos dias; a velhice avança, inconsciente das proprias miserias, embriagada nas bellezas da creação e no doce amor da patria. Um dispõe o seu jardim em requintes estheticos; outro cultiva arvores e flores, [...]; outro collecciona artigos da velha arte - desenhos dos mestres, deliciosos xarões e porcellanas, etc.; outro pratica a poesia classica ou os jogos de destreza; enfim, para não alongar muito a resenha, basta affirmar que o inkyo, pelas multiplices especialidades das suas ocupações de sedentario, é, além de um feliz, o maior sustentaculo das tradições nacionais, o principal protector das artes, o continuador do cavalheirismo indigena, o conservador e transmissor dos dotes typicos da raça."


in Cartas do Japão, Vol. III, Wenceslau de Moraes



 

jeudi 10 novembre 2022

 " Ora a pintura japoneza caracteriza-se pelos contornos indecisos, pelos tons vaporosos, apenas esboçados, pintura pouco representativa das coisas, antes incocadora de remininiscencias; é nisto que se apraz a alma japoneza. Pois a uta participa da mesma inconsistencia, da mesma fluidez,  da mesma parcimonia de detalhes. Como a pintura, é mais do que tudo um estimulo das nossas recordações, do que vimos, do que sentimos, do que soffremos. Reduzido em geral cada poema a dimensões infimas, não excedendo ordinariamente trinta e uma syllabas, contendo ás vezes apenas dezesete, a habilidade do poeta consiste em grupar dentro d'estes curtos limites uma suficiente escolha de palavras, que suggiram uma profunda impressão intima. Esta circumstancia torna por vezes muito difficil a interpretação da uta, sobretudo para estrangeiros.

Exemplifiquemos. Cito para estreia algumas uta que encontro no delicioso livro In Ghostly Japan, de Lafcadio Hearn, apresentando apenas para a primeira o original japonez :


Chôchô ni!...

Kyonem shishitaru

Tsuma koishi!


Traduzindo: - " Duas borboletas! ... no anno passado, morreu a minha querida esposa!" - Um sujeito viu duas borboletas, talvez no seu jardim, e irrompe  com a exclamação  que reproduzo. Que quer isto dizer? Saiba-se que um casal de borboletas  é o symbolo gracioso da união conjugal n'este paiz, sendo até  de uso enviar  duas borboletas  de papel com o presente de noivado. Agora comprehende-se o resto. [...]

Eis outra uta, curiosissima, atribuida á poetisa Chiyo, de remota fama. Um dia, propozeram-lhe que compozesse um poema de 17 syllabas, o qual se referisse ao quadrado, ao triangulo e ao circulo; ela respondeu de prompto: - " Desatando uma ponta do mosquiteiro, eis-me contemplando a lua!..."


in Cartas do Japão, vol. II, de Wenceslau de Moraes