Vera atravessava o dia em sofrimento, mas amava e cultivava o seu sofrimento.
Cumpria os pequenos deveres quotidianos – arrumar a roupa seca no estendal,
fazer uma lista do que faltava na despensa para a Felisberta ir às compras, no
dia da limpeza semanal da casa, preparar pequenas refeições.
As primeiras horas do dia eram sempre as mais difíceis e lentas, mas a
seguir ao almoço, o tempo quase corria alegre e fugitivo.
Vivia diariamente em espera, as mãos delicadamente frágeis e velhas,
pousadas no regaço ou a fazer coisas,
com gestos pequenos, para se contentar fácil e mansamente.
Ao levantar, tomava um duche rápido, pois sempre sentira uma certa
repugnância em tomar banho, despir-se, expor-se ao jato de água, mormente nos
dias frios de inverno.
Havia-se tornado uma acumuladora ao longo da sua já longa vida.
Na sala de estar e no quarto de hóspedes atulhava tudo o que não cabia
alhures – acumulava coisas inúteis das quais já não poderia desfazer-se sem
dor. Tudo adquirira um valor sentimental e Vera passava os dias a sorrir para as
coisas. As coisas a compreendiam.
Ao olhá-las, recordava e tapava o buraco da ausência. Vinha-lhe tão real a
sensação do momento vivido que escorregava imediatamente para um sentimento
mais sólido e aconchegante e aproveitava para o reviver com intensidade, até
que um leve desespero a crispava e a trazia de volta, à casa vazia, à renúncia,
à palidez. Não restavam dúvidas : desde a infância caminhava-se rumo à
solidão.
À noite, já na cama, puxava para si os lençóis brancos, na escuridão.
Chegava esse momento de profunda e amortecida saciedade – o momento quieto
antes do sono, como se Vera caísse então no seu verdadeiro estado. Já lhe era
mais do que natural viver sozinha. Sua vida continuara, após o desaparecimento
de uns e de outros, parentes e amigos, como se ela nunca tivesse conhecido
ninguém.
A casa era silenciosa e cheia de vento.
Vera sempre fora uma pessoa ocupada. Nunca tivera verdadeiramente tempo
para sentir tédio.
Ah, como desejava agora entrar depressa nessa região perfeita onde tudo
parecia brutalmente vivo. Sentiu-se invadida pela saciedade.
Outrora, sentira, premente, a necessidade de se aproximar das pessoas, a
necessidade de ser feliz e tentou arranjar as peças do puzzle de sua vida o
melhor possível, mas sempre lhe faltavam peças e caíra amiúde, violentamente,
no asco e no escuro. Mas depressa, depois da queda, procurava não desperdiçar
mais tempo para compensar a vida perdida e movia-se, livre da grande raiva que
a havia tomado, sem palavras e sem crueldade, porque deixara de sentir a necessidade
de castigar.
Livrava-se então de tudo : do amor, da vida íntima, da espera dos
outros. Recolhia-se dura e fechada como uma pedra, com movimentos estreitos.
Em seguida, invariavelmente, enchia-se de novos sentimentos e uma tristeza
apreensiva tomava conta dela ao mesmo tempo que ela desejava reintegrar-se no
movimento comum a todos – só queria alegrar-se de novo.
Precipitava-se logo em alguma coisa nova que pressentia não existiria por
muito tempo porque Vera tinha uma natureza volúvel e volátil.
Nunca como agora se aproximara tanto da sua realidade – pobreza e velhice. Vivia
em espera e vaga angústia.
Pelas janelas envidraçadas e sem cortinas, entravam claridades cinzentas e
surdas e algumas sombras das árvores.
Deitava-se sobre a cama dura, aspirando o cheiro mofento da velhice –
aquele cheiro indefinível, mas sempre presente, mesmo após as limpezas
esmeradas da criada.
Tinha os olhos doentios e cansados e sentia constantemente uma dor imutável
e calma no peito.
Vera ocupava-se de pequenas coisas que enchiam os seus dias e perdera totalmente
a necessidade de ser amável, embora a realidade fosse que mesmo querendo ainda
sê-lo, já não tinha para quem o ser.
Por vezes, era vertiginosamente aspirada para o seu passado distante e
mantinha-se num mutismo quem nem chegava a ser infeliz.
A lua aparecia no céu escuro, um vento morno de verão soprava sobre a
aldeia, trazendo fragores sobejamente familiares. Uma leve dormência tomava-a
então, uma quase irrealidade cheia de promessa e cansaço envolvia-a. Na escuridão
enxergava o contorno das coisas da casa em seu redor.
Passava muitos dos seus dias lendo, cheia de avidez, mas aquilo por que
mais ansiava era poder ir dormir cedo.
Desde o momento em que acordava, punha-se logo a pensar no instante em que
iria dormir de novo. Com o passar do tempo, nascera nela uma vida secreta. Ela comunicava
tenaz e atentamente com os objetos e os móveis da casa, de uma forma despercebida,
mas que não era senão o seu modo mais interior e verdadeiro de existir. Ali era
o seu reinado.
Antes de adormecer, dizia adeus às coisas na penumbra, num último relampejo
de consciência e sentia-se assim aconchegada e o sono tudo engolia – pelo sono
esquecia tanto o passado longínquo como o que se passara instantes antes.
Vera vivia no meio de uma natureza morta gigantesca. Parecia-lhe estar-se
misturando às coisas e dispunha-as ao seu agrado, num dia, para as perturbar e
deslocar no dia a seguir.
Ela própria se tornara silenciosa como uma coisa – o seu corpo e os seus
hábitos eram a forma imponderável como vivia a sua existência sem êxtase.
E ao seu redor, os instantes amalgamados já não se ligavam nem ao passado,
nem ao futuro, apenas eram o que deviam ser : fugazes e soltos. Assim os
compreendia e aceitava. Um tempo, por vezes, tão temerosamente inconquistável
que não lhe restava outra opção senão aceitá-lo com a placidez possível.
A velhice secara-lhe a pele que adquirira um tom baço ; ainda se
conservava jovem da testa até à linha fina dos lábios, mas depois da boca a corosão
do tempo já não se continha.
Os traços do seu rosto e do seu corpo haviam engrossado, irremediavelmente,
de uma gordura pálida.
Assim o tempo se acumulava, enquanto ela vivia os minutos, bem consciente da
sua própria morte, pisando calma o chão plano da sua decrépita casa ou andando
nos campos sem rumo.
Andava, andava muito, quando já não suportava a opressão silenciosa da casa
e das coisas. Os seus passos sucediam-se, no silêncio dos caminhos poeirentos,
ora pisando folhas húmidas e espessas, ora seixos incómodos.
Ia por atalhos, em redor da aldeia, e sem pressa avançava. Perdia de vista a sua casa e o amontoado das outras casas, cortava caminho, atravessava a estrada principal que levava à cidade e penetrava fundo nas terras, subia e descia alguns declives. mais devagar. O ar era claro nesses dias e continuava a andar até os seus pés doridos não poderem mais calcorrear chão.
E assim se passavam os dias e as noites caíam aos poucos.
Vera deslizava para uma escura calma amassada de solidão e de ausências de martírio
e acabava por adormecer todas as noites estourada de cansaço, com um prazer de
criança.
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