mardi 4 mai 2021

 

Sofia sentia sempre um enorme prazer em esconder o corpo, sob os lençóis lavados, ao fim do dia.

Era um longo prazer algo inexplicável, vivo e misterioso. Uma aconchegante riqueza descomunicando com o vazio da sua vida, o silêncio triste em volta dela e a sombra grave do mundo.

Lá fora, todo o dia, o vento soprara, desnudando paredes, vagando pelos ramos estéreis das árvores da Herdade. Todo o dia, sentira uma náusea difusa no corpo tenso. Talvez fosse o cheiro da casa agora vazia – os ângulos secos, os pontos neutros da casa que acumulavam poeira e bolores. Sim talvez fosse isso ou o estar ela vivendo vertiginosamente à beira das coisas, numa mansidão desoladora e exasperante. Melhor seria não aprofundar, nem olhar. Apenas prestar uma atenção vaga, adormecendo os ouvidos  e cerrando os olhos. Mas logo acontecia a manhã do dia seguinte.

Sofia erguia-se muito cedo, desde sempre fora uma madrugadora, ainda que nada tivesse para fazer. Enfiava o corpo num qualquer casual outfit, empurrava as portadas das janelas do quarto e mergulhava de cabeça na luz do novo dia. Custava-lhe muito enfrentar aquela claridade.

Os campos estendiam-se claros e sem manchas a perder de vista, enquanto ela se movia lentamente, ainda meio insone.

As árvores, ao longo do caminho que dava acesso à Herdade, a partir da estrada principal, emergiam também elas, de raízes ocultas, fustigadas pelo vento incessante.

Tudo no jardim escorria orvalho. Tudo flutuava pálida e quietamente. Tudo jazia ainda sem vida. Daí a instantes, um sol mais esbranquiçado tornaria tudo mais nítido. A névoa dispersaria e o jardim, o casarão surgiriam como um oásis no meio da dolorosa secura da Planície.

A vida do dia começava perplexa. Sofia sentia o coração a bater, num alvoroço, atravessado por um desejo impossível. Continuava à janela perscrutando e escutando o espaço em frente dos seus olhos como quem descobre uma paisagem pela primeira vez. Hesitava entre o desapontamento e um encanto difícil – afinal  ela nunca saíra daquele lugar verdadeiramente.

Uma certa alegria pairava no ar. O verão anunciava-se com alguma antecipação e penetrava pelo vazio claro da janela.

Sofia já se sentira bem viva naquele lugar. Com pequenas resoluções  tomadas a cada minuto. Já fora colérica e opinativa também. Já fora mulher. Ali vivera com os pais, ali casara e dera à luz. E depois, sucedera o que sempre sucede – uma perda lenta. Seu marido morrera num acidente de viação ainda os seus dois filhos eram crianças. Tornados homens, haviam deixado a Herdade para se instalarem na Cidade, onde exerciam agora as suas profissões.

Sofia ficara ao abandono, como os móveis empoeirados do casarão. O seu corpo vivia agora separado dos outros corpos todos.

Preguiçosa, cansada e vaga, há muito Sofia deixara de abranger com o olhar a sua própria vida.

Do tempo de solteira guardava fiapos de memórias – uma época sem homem e sem filhos remotamente gloriosa, mergulhada num silêncio absoluto.

Poucos fios a ligavam agora ao mundo. Chocava amiúde com as coisas. Tudo lhe parecia irremediável – a perda, a velhice, a exclusão. Mas também já não sentia necessidade de ligar-se em demasia ao passado. Essas memórias causavam-lhe dor. Seria melhor doravante viver sem um pensamento, um desejo ou uma lembrança.

Os seus dias na Herdade eram largos e vazios como o casarão. Já não recebia visitas. Só duas vizinhas mais velhas a visitavam de tempos a tempos, à hora do chá.

Todos os anos, uma prima do Norte vinha passar umas semanas, no final do Verão, por não suportar o calor sufocante da Planície.

Quando Celeste partia, a vida no casarão retomava as suas rotinas e era aspirada novamente pelo vórtice sombrio do tempo e Sofia preparava-se mentalmente para enfrentar mais um longo e frio Inverno que não acabaria nunca.

Retomava a sua solidão sem tristeza em demasia. Já estava avezada àquela vida desde que enviuvara.

Os filhos também a visitavam, mas os seus afazeres profissionais na Cidade não lhes deixavam muito tempo livre e nunca permaneciam, na Herdade, mais do que dois ou três dias.

A sofia bastava-lhe agora apenas viver vagarosamente. Viver numa lentidão trôpega.

Por vezes, antes de se deitar, ainda espiava o céu, as estrelas ou caminhava um pouco em torno do casarão, respirando a claridade do ar à tardinha.

Nessas ocasiões, fitava o campo em seu redor e mergulhava em pensamentos íntimos rapidamente afastados. Era tão rápida a Vida. Fechava os olhos e quase sentia a maresia vinda da extensa Planície. As plantas secas e cobertas de poeira do caminho, os campos de girassóis a perder de vista, os pássaros aquietados nos ramos das árvores. As corujas piando. O seu coração batia então mais depressa. Sentia-se livre e leve como se caminhasse ao longo da praia, à beira-mar.

A sua vida era minuciosa e vaga, repleta de gestos rotineiros e mecânicos, rasa como o vestígio arruinado de outra vida e só lhe restava seguir cautelosamente vivendo e esperar na manhã clara pelo final da tarde.

Passeava devagar, prestando atenção aos seus passos cambaleantes e ao silêncio. Olhava para os próprios pés muito trôpegos, para uma pedra em que tropeçara ou para um pássaro e depois regressava lentamente ao casarão e abandonava o corpo na cama, entre os providenciais lençóis frescos de linho antigo, já sem a menor força, anulando-se sem esforço após a toma dos comprimidos para dormir.

O seu coração esfriava paulatinamente e acordava, na manhã seguinte, desapontada e seca, cambaleante em pequenos passos até se conseguir voltar a erguer erecta.

O ar já se tornava húmido. A chuva caía sem cessar.

Chegariam depressa os meses em que ficaria mais sozinha, apenas olhando a chuva. Esses dias eram urdidos de uma tristeza perfeita – chuva e frio.

E num fechar de olhos mais um final de ano se aproximava. Talvez os seus filhos a viessem visitar, com as suas namoradas.

Isso decerto lhe traria alegria.

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