Sofia sentia sempre um enorme prazer em esconder o corpo,
sob os lençóis lavados, ao fim do dia.
Era um longo prazer algo
inexplicável, vivo e misterioso. Uma aconchegante riqueza descomunicando com o
vazio da sua vida, o silêncio triste em volta dela e a sombra grave do mundo.
Lá fora, todo o dia, o vento
soprara, desnudando paredes, vagando pelos ramos estéreis das árvores da
Herdade. Todo o dia, sentira uma náusea difusa no corpo tenso. Talvez fosse o
cheiro da casa agora vazia – os ângulos secos, os pontos neutros da casa que
acumulavam poeira e bolores. Sim talvez fosse isso ou o estar ela vivendo vertiginosamente
à beira das coisas, numa mansidão desoladora e exasperante. Melhor seria não
aprofundar, nem olhar. Apenas prestar uma atenção vaga, adormecendo os
ouvidos e cerrando os olhos. Mas logo
acontecia a manhã do dia seguinte.
Sofia erguia-se muito cedo, desde
sempre fora uma madrugadora, ainda que nada tivesse para fazer. Enfiava o corpo
num qualquer casual outfit, empurrava as portadas das janelas do quarto e
mergulhava de cabeça na luz do novo dia. Custava-lhe muito enfrentar aquela
claridade.
Os campos estendiam-se claros
e sem manchas a perder de vista, enquanto ela se movia lentamente, ainda meio
insone.
As árvores, ao longo do
caminho que dava acesso à Herdade, a partir da estrada principal, emergiam
também elas, de raízes ocultas, fustigadas pelo vento incessante.
Tudo no jardim escorria
orvalho. Tudo flutuava pálida e quietamente. Tudo jazia ainda sem vida. Daí a
instantes, um sol mais esbranquiçado tornaria tudo mais nítido. A névoa
dispersaria e o jardim, o casarão surgiriam como um oásis no meio da dolorosa
secura da Planície.
A vida do dia começava
perplexa. Sofia sentia o coração a bater, num alvoroço, atravessado por um
desejo impossível. Continuava à janela perscrutando e escutando o espaço em
frente dos seus olhos como quem descobre uma paisagem pela primeira vez. Hesitava
entre o desapontamento e um encanto difícil – afinal ela nunca saíra daquele lugar verdadeiramente.
Uma certa alegria pairava no
ar. O verão anunciava-se com alguma antecipação e penetrava pelo vazio claro da
janela.
Sofia já se sentira bem viva
naquele lugar. Com pequenas resoluções
tomadas a cada minuto. Já fora colérica e opinativa também. Já fora
mulher. Ali vivera com os pais, ali casara e dera à luz. E depois, sucedera o
que sempre sucede – uma perda lenta. Seu marido morrera num acidente de viação
ainda os seus dois filhos eram crianças. Tornados homens, haviam deixado a
Herdade para se instalarem na Cidade, onde exerciam agora as suas profissões.
Sofia ficara ao abandono, como
os móveis empoeirados do casarão. O seu corpo vivia agora separado dos outros
corpos todos.
Preguiçosa, cansada e vaga, há
muito Sofia deixara de abranger com o olhar a sua própria vida.
Do tempo de solteira guardava
fiapos de memórias – uma época sem homem e sem filhos remotamente gloriosa,
mergulhada num silêncio absoluto.
Poucos fios a ligavam agora ao
mundo. Chocava amiúde com as coisas. Tudo lhe parecia irremediável – a perda, a
velhice, a exclusão. Mas também já não sentia necessidade de ligar-se em
demasia ao passado. Essas memórias causavam-lhe dor. Seria melhor doravante
viver sem um pensamento, um desejo ou uma lembrança.
Os seus dias na Herdade eram
largos e vazios como o casarão. Já não recebia visitas. Só duas vizinhas mais
velhas a visitavam de tempos a tempos, à hora do chá.
Todos os anos, uma prima do
Norte vinha passar umas semanas, no final do Verão, por não suportar o calor
sufocante da Planície.
Quando Celeste partia, a vida no
casarão retomava as suas rotinas e era aspirada novamente pelo vórtice sombrio
do tempo e Sofia preparava-se mentalmente para enfrentar mais um longo e frio Inverno
que não acabaria nunca.
Retomava a sua solidão sem
tristeza em demasia. Já estava avezada àquela vida desde que enviuvara.
Os filhos também a visitavam,
mas os seus afazeres profissionais na Cidade não lhes deixavam muito tempo
livre e nunca permaneciam, na Herdade, mais do que dois ou três dias.
A sofia bastava-lhe agora
apenas viver vagarosamente. Viver numa lentidão trôpega.
Por vezes, antes de se deitar,
ainda espiava o céu, as estrelas ou caminhava um pouco em torno do casarão,
respirando a claridade do ar à tardinha.
Nessas ocasiões, fitava o
campo em seu redor e mergulhava em pensamentos íntimos rapidamente afastados. Era
tão rápida a Vida. Fechava os olhos e quase sentia a maresia vinda da extensa
Planície. As plantas secas e cobertas de poeira do caminho, os campos de girassóis
a perder de vista, os pássaros aquietados nos ramos das árvores. As corujas piando.
O seu coração batia então mais depressa. Sentia-se livre e leve como se
caminhasse ao longo da praia, à beira-mar.
A sua vida era minuciosa e
vaga, repleta de gestos rotineiros e mecânicos, rasa como o vestígio arruinado
de outra vida e só lhe restava seguir cautelosamente vivendo e esperar na manhã
clara pelo final da tarde.
Passeava devagar, prestando
atenção aos seus passos cambaleantes e ao silêncio. Olhava para os próprios pés
muito trôpegos, para uma pedra em que tropeçara ou para um pássaro e depois regressava
lentamente ao casarão e abandonava o corpo na cama, entre os providenciais
lençóis frescos de linho antigo, já sem a menor força, anulando-se sem esforço
após a toma dos comprimidos para dormir.
O seu coração esfriava
paulatinamente e acordava, na manhã seguinte, desapontada e seca, cambaleante
em pequenos passos até se conseguir voltar a erguer erecta.
O ar já se tornava húmido. A chuva
caía sem cessar.
Chegariam depressa os meses em
que ficaria mais sozinha, apenas olhando a chuva. Esses dias eram urdidos de
uma tristeza perfeita – chuva e frio.
E num fechar de olhos mais um
final de ano se aproximava. Talvez os seus filhos a viessem visitar, com as suas
namoradas.
Isso decerto lhe traria
alegria.
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