Ao fim de tantos meses sem sair de casa, e de
tantos dias arrastados pela casa e passados, maioritariamente, dormitando no
sofá ou na cama, que tinha o hábito de deixar sempre desfeita, buscava agora o
ar livre. Até a sua pele tinha adquirido um cheiro a mofo, indefinível e forte.
Tinha previsto dar um longo passeio, apesar do medo de se cansar e de não
conseguir voltar a casa.
Decidida, subia o morro, em busca da represa, onde volumes de água eram
contidos, aprisionados por pedras de granito e ladeados de tufos de ervas.
Subia o acentuado declive e, ao longe, avistava apenas uma linha de terra
ligada a um céu luminoso. As ervas altas agitavam-se ao sopro zangado do vento.
A represa gemia sem interrupção.
Sentou-se sobre uma pedra ardente de sol. Tinha a sensação de que passara
toda a sua vida sentada naquela pedra.
Um indizível bem-estar se apoderava dos seus membros- era algo sem
profundidade, pois à volta dela só existiam ar e silêncio.
Fechava os olhos e quando os reabria as coisas reemergiam, lentamente. A água
da represa rumorejava.
Naquele momento, era alegre e luminosa. Sorria para si mesma. Esgotada de
forças, sentia-se pequena no topo daquele morro.
O seu coração ainda batia de cansaço e concordava com tudo. Com o final da
tarde, com o vento fresco, com o seu medo de criança, com os raios de luz amortecidos
resvalando pela encosta da colina, com o céu enchendo-se de nuvens, com a vaguidão
em que flutuava o seu corpo.
Voltara do passeio numa quase noite.
Abriu a porta da casa que herdara de sua avó, na aldeia onde nascera. A sala
tinha um ambiente frio e abafado – quase opressivo. Tocou ao de leve, com a
ponta dos dedos, as pétalas das flores quase murchas, eretas numa jarra, no
centro da mesa.
Sentia-se a entristecer. Ficara absorta e sem pensamentos. Não tinha vontade
de se mover.
No seu quarto de dormir, sobre a cabeceira da cama pendia ainda um cristo
na cruz, de feridas tristes. Não tivera coragem de o arrancar do sítio que a
sua avó, excessivamente crente, havia escolhido para ele. Honrava assim a
memória dela.
Tirou o chapéu que usava, nas suas deambulações, para se proteger do sol ardente.
A cabeça era nua e pobre, os cabelos ralos e sem vida. Olhou-se ao espelho da
cómoda : para onde fora o seu poder sedutor de outrora ?
Mas algo ali estava – pensava, obstinada, ainda que quase desmaiado, lucilando
num rosto sério e ofendido. Havia sido amada por todos, mas poucos tinha amado.
Um sorriso parado iluminava o seu rosto de antiga menina e pairava entre a
cómoda e a cama, o ar e o seu próprio corpo flutuando em busca de algo – tão indecifrável
era este silêncio ensurdecedor.
Não esquecer, pensava ela , observando tudo em seu redor, como se fosse
partir e devesse levar consigo a memória de todos os instantes que ali vivera. Não
esquecer.
Sentia-se à beira de uma revelação. Tinha de livrar-se de alguma coisa, mas
não saberia dizer de quê. Estava impotente frente à voragem impiedosa. A sua
fragilidade era bem visível em todos os pontos do seu corpo. Vivia há muito sem
gosto, nem força, numa impaciência turva. Chegara à última etapa da degradação.
A intransponível impressão que tinha da sua existência já longa é que nada
de essencial fora atingido com o seu amor. Enterneceu-se então na sua solidão
quase ao ponto de chorar.
Ela fora linda, mutável, fraca, inteligente, bruta, versátil, egoísta.
A luz apagara-se – qual a importância de continuar a ser Vera ?
A pele crestada e enrugada, a vista usada, até a lâmpada do quarto diminuía
de força. Sem prazer, era como vivia agora. E o que fazer em seguida ?
Foi tomada de vertigens e, de repente, sentiu-se perigosamente gelada e intangível.
Esperava. E os seus olhos turvos e aflitos começavam a pensar noutra coisa. Sentia
a sua infelicidade a crescer a cada instante. E uma angústia escura e opaca apoderava-se
dela e engrossava desesperadamente como um mar encapelado. Nada de essencial
fora atingido com o seu amor.
As coisas fugiam dela brilhando à distância. As feridas nunca haviam cicatrizado
totalmente.
O amor fora temporário como a chuva que não pode durar eternamente. Ninguém
a fizera feliz ou fizera ?
O seu corpo era pesado de cansaço e de tristeza. Nada restava da sua
exuberante feminilidade. Numa cólera mudamente violenta, rebelava-se contra o
odioso irremediável.
Oh, a selvagem tristeza da Memória !
Tudo dentro dela se confundia em sombras difusas e sinuosas. Permanecia absorta,
fitando insistentemente a sua imagem no espelho. Entrara num estranho sono do
qual parecia impossível ser acordada.
Evolava-se daqueles caminhos furtados. O seu desespero ultrapassava todas
as amarguras da vida. Livrara-se misteriosamente de tudo e de todos, do próprio
amor.
Regressava à calma interior. Permanecia especada, sem ardor, nem alegria. Reabriu os
olhos por um instante cerrados e viu-se, o corpo fechado dentro de si-própria,
mistificado e flutuante. Livre !
Em toda a parte, ele poderia continuar a olhar para a penumbra. Havia tempo !
A noite aconteceria. Em breve desmancharia os lençóis da cama e as folhas das
árvores estremeceriam, vividas, nas trevas.
Vera dissolver-se-ia e mergulharia na própria matéria dissolvida e na líquida
obscuridade do quarto, como um peixe volteando, serenamente, a cauda
resplandecente, num mar grosso e desmanchado.
Com um bater de pálpebras, Vera mudava, dramaticamente, o plano da sua existência
interior. Uma criança magra e pálida erguia-se, no fundo da sua visão, mas logo
desaparecia no seu próprio mar – era apenas uma forma no escuro, feita do
próprio escuro. Uma curta visão no meio de pequenas ondas sucessivas.
O sono cedo a encerraria como uma mancha negra.
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