dimanche 30 mai 2021
jeudi 27 mai 2021
mercredi 26 mai 2021
POEMA INVOLUNTÁRIO de NATÁLIA CORREIA
Decididamente a palavra
quer entrar no poema e dispõe
com caligráfica raiva
do que o poeta no poema põe.
Entretanto o poema subsiste
informal em teus olhos talvez
mas perdido se em precisa palavra
significas o que vês.
Virtualmente teus cabelos sabem
se espalhando avencas no travesseiro
que se eu digo prodigiosos cabelos
as insólitas flores que se abrem
não têm sua cor nem seu cheiro.
Finalmente vejo-te e sei que o mar
o pinheiro a nuvem valem a pena
e é assim que sem poetizar
se faz a si mesmo o poema.
dimanche 23 mai 2021
samedi 22 mai 2021
Vera atravessava o dia em sofrimento, mas amava e cultivava o seu sofrimento.
Cumpria os pequenos deveres quotidianos – arrumar a roupa seca no estendal,
fazer uma lista do que faltava na despensa para a Felisberta ir às compras, no
dia da limpeza semanal da casa, preparar pequenas refeições.
As primeiras horas do dia eram sempre as mais difíceis e lentas, mas a
seguir ao almoço, o tempo quase corria alegre e fugitivo.
Vivia diariamente em espera, as mãos delicadamente frágeis e velhas,
pousadas no regaço ou a fazer coisas,
com gestos pequenos, para se contentar fácil e mansamente.
Ao levantar, tomava um duche rápido, pois sempre sentira uma certa
repugnância em tomar banho, despir-se, expor-se ao jato de água, mormente nos
dias frios de inverno.
Havia-se tornado uma acumuladora ao longo da sua já longa vida.
Na sala de estar e no quarto de hóspedes atulhava tudo o que não cabia
alhures – acumulava coisas inúteis das quais já não poderia desfazer-se sem
dor. Tudo adquirira um valor sentimental e Vera passava os dias a sorrir para as
coisas. As coisas a compreendiam.
Ao olhá-las, recordava e tapava o buraco da ausência. Vinha-lhe tão real a
sensação do momento vivido que escorregava imediatamente para um sentimento
mais sólido e aconchegante e aproveitava para o reviver com intensidade, até
que um leve desespero a crispava e a trazia de volta, à casa vazia, à renúncia,
à palidez. Não restavam dúvidas : desde a infância caminhava-se rumo à
solidão.
À noite, já na cama, puxava para si os lençóis brancos, na escuridão.
Chegava esse momento de profunda e amortecida saciedade – o momento quieto
antes do sono, como se Vera caísse então no seu verdadeiro estado. Já lhe era
mais do que natural viver sozinha. Sua vida continuara, após o desaparecimento
de uns e de outros, parentes e amigos, como se ela nunca tivesse conhecido
ninguém.
A casa era silenciosa e cheia de vento.
Vera sempre fora uma pessoa ocupada. Nunca tivera verdadeiramente tempo
para sentir tédio.
Ah, como desejava agora entrar depressa nessa região perfeita onde tudo
parecia brutalmente vivo. Sentiu-se invadida pela saciedade.
Outrora, sentira, premente, a necessidade de se aproximar das pessoas, a
necessidade de ser feliz e tentou arranjar as peças do puzzle de sua vida o
melhor possível, mas sempre lhe faltavam peças e caíra amiúde, violentamente,
no asco e no escuro. Mas depressa, depois da queda, procurava não desperdiçar
mais tempo para compensar a vida perdida e movia-se, livre da grande raiva que
a havia tomado, sem palavras e sem crueldade, porque deixara de sentir a necessidade
de castigar.
Livrava-se então de tudo : do amor, da vida íntima, da espera dos
outros. Recolhia-se dura e fechada como uma pedra, com movimentos estreitos.
Em seguida, invariavelmente, enchia-se de novos sentimentos e uma tristeza
apreensiva tomava conta dela ao mesmo tempo que ela desejava reintegrar-se no
movimento comum a todos – só queria alegrar-se de novo.
Precipitava-se logo em alguma coisa nova que pressentia não existiria por
muito tempo porque Vera tinha uma natureza volúvel e volátil.
Nunca como agora se aproximara tanto da sua realidade – pobreza e velhice. Vivia
em espera e vaga angústia.
Pelas janelas envidraçadas e sem cortinas, entravam claridades cinzentas e
surdas e algumas sombras das árvores.
Deitava-se sobre a cama dura, aspirando o cheiro mofento da velhice –
aquele cheiro indefinível, mas sempre presente, mesmo após as limpezas
esmeradas da criada.
Tinha os olhos doentios e cansados e sentia constantemente uma dor imutável
e calma no peito.
Vera ocupava-se de pequenas coisas que enchiam os seus dias e perdera totalmente
a necessidade de ser amável, embora a realidade fosse que mesmo querendo ainda
sê-lo, já não tinha para quem o ser.
Por vezes, era vertiginosamente aspirada para o seu passado distante e
mantinha-se num mutismo quem nem chegava a ser infeliz.
A lua aparecia no céu escuro, um vento morno de verão soprava sobre a
aldeia, trazendo fragores sobejamente familiares. Uma leve dormência tomava-a
então, uma quase irrealidade cheia de promessa e cansaço envolvia-a. Na escuridão
enxergava o contorno das coisas da casa em seu redor.
Passava muitos dos seus dias lendo, cheia de avidez, mas aquilo por que
mais ansiava era poder ir dormir cedo.
Desde o momento em que acordava, punha-se logo a pensar no instante em que
iria dormir de novo. Com o passar do tempo, nascera nela uma vida secreta. Ela comunicava
tenaz e atentamente com os objetos e os móveis da casa, de uma forma despercebida,
mas que não era senão o seu modo mais interior e verdadeiro de existir. Ali era
o seu reinado.
Antes de adormecer, dizia adeus às coisas na penumbra, num último relampejo
de consciência e sentia-se assim aconchegada e o sono tudo engolia – pelo sono
esquecia tanto o passado longínquo como o que se passara instantes antes.
Vera vivia no meio de uma natureza morta gigantesca. Parecia-lhe estar-se
misturando às coisas e dispunha-as ao seu agrado, num dia, para as perturbar e
deslocar no dia a seguir.
Ela própria se tornara silenciosa como uma coisa – o seu corpo e os seus
hábitos eram a forma imponderável como vivia a sua existência sem êxtase.
E ao seu redor, os instantes amalgamados já não se ligavam nem ao passado,
nem ao futuro, apenas eram o que deviam ser : fugazes e soltos. Assim os
compreendia e aceitava. Um tempo, por vezes, tão temerosamente inconquistável
que não lhe restava outra opção senão aceitá-lo com a placidez possível.
A velhice secara-lhe a pele que adquirira um tom baço ; ainda se
conservava jovem da testa até à linha fina dos lábios, mas depois da boca a corosão
do tempo já não se continha.
Os traços do seu rosto e do seu corpo haviam engrossado, irremediavelmente,
de uma gordura pálida.
Assim o tempo se acumulava, enquanto ela vivia os minutos, bem consciente da
sua própria morte, pisando calma o chão plano da sua decrépita casa ou andando
nos campos sem rumo.
Andava, andava muito, quando já não suportava a opressão silenciosa da casa
e das coisas. Os seus passos sucediam-se, no silêncio dos caminhos poeirentos,
ora pisando folhas húmidas e espessas, ora seixos incómodos.
Ia por atalhos, em redor da aldeia, e sem pressa avançava. Perdia de vista a sua casa e o amontoado das outras casas, cortava caminho, atravessava a estrada principal que levava à cidade e penetrava fundo nas terras, subia e descia alguns declives. mais devagar. O ar era claro nesses dias e continuava a andar até os seus pés doridos não poderem mais calcorrear chão.
E assim se passavam os dias e as noites caíam aos poucos.
Vera deslizava para uma escura calma amassada de solidão e de ausências de martírio
e acabava por adormecer todas as noites estourada de cansaço, com um prazer de
criança.
dimanche 16 mai 2021
vendredi 14 mai 2021
Ao fim de tantos meses sem sair de casa, e de
tantos dias arrastados pela casa e passados, maioritariamente, dormitando no
sofá ou na cama, que tinha o hábito de deixar sempre desfeita, buscava agora o
ar livre. Até a sua pele tinha adquirido um cheiro a mofo, indefinível e forte.
Tinha previsto dar um longo passeio, apesar do medo de se cansar e de não
conseguir voltar a casa.
Decidida, subia o morro, em busca da represa, onde volumes de água eram
contidos, aprisionados por pedras de granito e ladeados de tufos de ervas.
Subia o acentuado declive e, ao longe, avistava apenas uma linha de terra
ligada a um céu luminoso. As ervas altas agitavam-se ao sopro zangado do vento.
A represa gemia sem interrupção.
Sentou-se sobre uma pedra ardente de sol. Tinha a sensação de que passara
toda a sua vida sentada naquela pedra.
Um indizível bem-estar se apoderava dos seus membros- era algo sem
profundidade, pois à volta dela só existiam ar e silêncio.
Fechava os olhos e quando os reabria as coisas reemergiam, lentamente. A água
da represa rumorejava.
Naquele momento, era alegre e luminosa. Sorria para si mesma. Esgotada de
forças, sentia-se pequena no topo daquele morro.
O seu coração ainda batia de cansaço e concordava com tudo. Com o final da
tarde, com o vento fresco, com o seu medo de criança, com os raios de luz amortecidos
resvalando pela encosta da colina, com o céu enchendo-se de nuvens, com a vaguidão
em que flutuava o seu corpo.
Voltara do passeio numa quase noite.
Abriu a porta da casa que herdara de sua avó, na aldeia onde nascera. A sala
tinha um ambiente frio e abafado – quase opressivo. Tocou ao de leve, com a
ponta dos dedos, as pétalas das flores quase murchas, eretas numa jarra, no
centro da mesa.
Sentia-se a entristecer. Ficara absorta e sem pensamentos. Não tinha vontade
de se mover.
No seu quarto de dormir, sobre a cabeceira da cama pendia ainda um cristo
na cruz, de feridas tristes. Não tivera coragem de o arrancar do sítio que a
sua avó, excessivamente crente, havia escolhido para ele. Honrava assim a
memória dela.
Tirou o chapéu que usava, nas suas deambulações, para se proteger do sol ardente.
A cabeça era nua e pobre, os cabelos ralos e sem vida. Olhou-se ao espelho da
cómoda : para onde fora o seu poder sedutor de outrora ?
Mas algo ali estava – pensava, obstinada, ainda que quase desmaiado, lucilando
num rosto sério e ofendido. Havia sido amada por todos, mas poucos tinha amado.
Um sorriso parado iluminava o seu rosto de antiga menina e pairava entre a
cómoda e a cama, o ar e o seu próprio corpo flutuando em busca de algo – tão indecifrável
era este silêncio ensurdecedor.
Não esquecer, pensava ela , observando tudo em seu redor, como se fosse
partir e devesse levar consigo a memória de todos os instantes que ali vivera. Não
esquecer.
Sentia-se à beira de uma revelação. Tinha de livrar-se de alguma coisa, mas
não saberia dizer de quê. Estava impotente frente à voragem impiedosa. A sua
fragilidade era bem visível em todos os pontos do seu corpo. Vivia há muito sem
gosto, nem força, numa impaciência turva. Chegara à última etapa da degradação.
A intransponível impressão que tinha da sua existência já longa é que nada
de essencial fora atingido com o seu amor. Enterneceu-se então na sua solidão
quase ao ponto de chorar.
Ela fora linda, mutável, fraca, inteligente, bruta, versátil, egoísta.
A luz apagara-se – qual a importância de continuar a ser Vera ?
A pele crestada e enrugada, a vista usada, até a lâmpada do quarto diminuía
de força. Sem prazer, era como vivia agora. E o que fazer em seguida ?
Foi tomada de vertigens e, de repente, sentiu-se perigosamente gelada e intangível.
Esperava. E os seus olhos turvos e aflitos começavam a pensar noutra coisa. Sentia
a sua infelicidade a crescer a cada instante. E uma angústia escura e opaca apoderava-se
dela e engrossava desesperadamente como um mar encapelado. Nada de essencial
fora atingido com o seu amor.
As coisas fugiam dela brilhando à distância. As feridas nunca haviam cicatrizado
totalmente.
O amor fora temporário como a chuva que não pode durar eternamente. Ninguém
a fizera feliz ou fizera ?
O seu corpo era pesado de cansaço e de tristeza. Nada restava da sua
exuberante feminilidade. Numa cólera mudamente violenta, rebelava-se contra o
odioso irremediável.
Oh, a selvagem tristeza da Memória !
Tudo dentro dela se confundia em sombras difusas e sinuosas. Permanecia absorta,
fitando insistentemente a sua imagem no espelho. Entrara num estranho sono do
qual parecia impossível ser acordada.
Evolava-se daqueles caminhos furtados. O seu desespero ultrapassava todas
as amarguras da vida. Livrara-se misteriosamente de tudo e de todos, do próprio
amor.
Regressava à calma interior. Permanecia especada, sem ardor, nem alegria. Reabriu os
olhos por um instante cerrados e viu-se, o corpo fechado dentro de si-própria,
mistificado e flutuante. Livre !
Em toda a parte, ele poderia continuar a olhar para a penumbra. Havia tempo !
A noite aconteceria. Em breve desmancharia os lençóis da cama e as folhas das
árvores estremeceriam, vividas, nas trevas.
Vera dissolver-se-ia e mergulharia na própria matéria dissolvida e na líquida
obscuridade do quarto, como um peixe volteando, serenamente, a cauda
resplandecente, num mar grosso e desmanchado.
Com um bater de pálpebras, Vera mudava, dramaticamente, o plano da sua existência
interior. Uma criança magra e pálida erguia-se, no fundo da sua visão, mas logo
desaparecia no seu próprio mar – era apenas uma forma no escuro, feita do
próprio escuro. Uma curta visão no meio de pequenas ondas sucessivas.
O sono cedo a encerraria como uma mancha negra.
dimanche 9 mai 2021
Weil sich alles verändert hat.
Tinha mergulhado, definitivamente, na vileza da velhice.
Olhava-se ao espelho, mal acordava, o rosto pálido e
cheio de pregas abjetas, os olhos com as pálpebras descaídas, os lábios
descarnados e uma boca sem expressão. Os cabelos ralos e embranquecidos.
Deixara, há muito, de se
agradar. Ficava especada frente ao espelho, trémula de asco. Como era feia aquela
imagem de si. Ria então, com uma gargalhada falsa para se animar.
Existia agora numa vida secreta.
O seu coração cansado só já pulsava na sombra. Lento e vermelho, sem alegria,
nem pavor em demasia.
Durante o dia, era acometida
por súbitas exaustões que a forçavam a deitar-se e a fechar, por instantes,
mais ou menos dilatados, os olhos, despindo-se de toda e qualquer inquietação,
esquecendo o medo turvo.
Os músculos, finalmente mansos
e contentes, mergulhavam num torpor feito de sensações túrgidas e lentas. Parecia-lhe,
ao emergir desses apagões, que um tempo incontável decorrera e achava-se, por
instantes, muito longínqua da sua existência terrena. Quase teria preferido
conservar-se inanimada, mas quando abria os olhos, achava-se, invariavelmente,
sobre a cama, no quarto vazio e frio.
Um profundo silêncio envolvia a
casa.
Algures, o vento sussurrava pelos
cantos. Nada sucedia no casarão vasto e nu. Espiava, diariamente, a sua própria
degradação a par do que sucedia em seu redor.
As tardes eram longas e tensas
e tudo lhe parecia tão imaterial e fugaz a pontos de já não conseguir deter-se
em nenhum pensamento. O que de precioso existira, na sua vida, fora evanescente
e era agora indistinto.
De ora em diante, só lhe
restava concordar com o inevitável – a perda e a queda. Esse era o movimento
infinito da vida.
A matéria de que era feita
corrompera-se devagar e irremediavelmente, mas também se aniquilara muito do
sofrimento – vivia num desânimo sem dor. A decadência era irreprimível.
O vento incessante intercetava
e desmanchava brutalmente os seus pensamentos. Esgotara as palavras de que se
alimentava e não encontrava outras.
Movia-se com cuidado. Olhava o
ar silencioso do quarto. Envelhecera ali palidamente. A sua vida era a soma de
infinitos instantes imóveis e estéreis.
Tinha a consciência desse
tempo atrás de si e a noção desassossegada de algo que não poderia jamais
tocar, que já não lhe pertencia, mas a que ainda se prendia pela incapacidade
de criar outra vida e um novo tempo que fizessem sentido.
Via a si mesma, como de longe,
uma forma escura e desaprumada a curvar-se em direção ao chão. Com um suspiro
impaciente e furioso, imobilizou-se no quarto, frente ao espelho.
Nos campos, à volta do
casarão, a neblina das manhãs reforçava o seu sentimento de solidão profunda. A
terra era fria e indiferente.
Pensava, com inquietação, no
rigor do inverno próximo e previa um novo e mais fundo desespero em permanecer
presa no interior da casa. Com firmeza, resolvia então cerrar o coração. Não havia
quem a salvasse. Outros infindáveis e fugazes momentos se sucederiam e
morreriam. Nada aconteceria. Permaneceria ali, rodeada pelo silêncio impalpável,
sombrio e húmido.
O seu rosto inexpressivo, quieto
e mudo, pairava à espera. Lá estava ela. O seu corpo já não tinha sede, nem fome.
Ainda ontem ria de prazer. Ainda ontem se estendia à sua frente o futuro.
O seu movimento de vida estancara
como um relógio cuja pilha se gastou. Lá estava ela pois.
Cessara para sempre o perigo
de viver. Agora era esperar…
jeudi 6 mai 2021
Todas as manhãs, faz cerca de oito meses, me levanto à mesma hora para uma sessão de fisioterapia diária. A clínica fica perto de uma escola. Aí estaciono o carro. Devido aos sucessivos confinamentos, raramente ali vi crianças.
Hoje, recebi de uma delas o pedido mais inusitado que algum dia me foi endereçado. Como me dirigia ao carro, vi três meninas agarradas ao gradeamento, observando um cão grande e castanho. O cão chegou-se perto de mim fairando as minhas calças. De repente, ouço uma voz infantil.
- Senhora, pode fazer-lhe uma festinha por mim?
Ainda hesitei uma fração de segundo, e disse à menina que eu habitualmente tenho medo de cães, mas o cão levantou a cabeça, bem junto às minhas pernas, como que a reinvindicar essa carícia!
Avancei a mão e fiz-lhe a festinha na testa um pouco a medo e exclamei:
- Olha afinal o cão é muito fofinho!
E ouço a voz da criança:
- É uma menina! Não é um cão, é uma cadela!
Só então reparei nas suas numerosa tetas!
Sorri amplamente por baixo da máscara. Eu que normalmente não sou muito afável nem com crianças, nem com cães, fiquei rendida. Esta garota encheu-me as medidas. Fiquei com fé na humanidade e confiança nas cadelas. Abençoadas!
mardi 4 mai 2021
Sofia sentia sempre um enorme prazer em esconder o corpo,
sob os lençóis lavados, ao fim do dia.
Era um longo prazer algo
inexplicável, vivo e misterioso. Uma aconchegante riqueza descomunicando com o
vazio da sua vida, o silêncio triste em volta dela e a sombra grave do mundo.
Lá fora, todo o dia, o vento
soprara, desnudando paredes, vagando pelos ramos estéreis das árvores da
Herdade. Todo o dia, sentira uma náusea difusa no corpo tenso. Talvez fosse o
cheiro da casa agora vazia – os ângulos secos, os pontos neutros da casa que
acumulavam poeira e bolores. Sim talvez fosse isso ou o estar ela vivendo vertiginosamente
à beira das coisas, numa mansidão desoladora e exasperante. Melhor seria não
aprofundar, nem olhar. Apenas prestar uma atenção vaga, adormecendo os
ouvidos e cerrando os olhos. Mas logo
acontecia a manhã do dia seguinte.
Sofia erguia-se muito cedo, desde
sempre fora uma madrugadora, ainda que nada tivesse para fazer. Enfiava o corpo
num qualquer casual outfit, empurrava as portadas das janelas do quarto e
mergulhava de cabeça na luz do novo dia. Custava-lhe muito enfrentar aquela
claridade.
Os campos estendiam-se claros
e sem manchas a perder de vista, enquanto ela se movia lentamente, ainda meio
insone.
As árvores, ao longo do
caminho que dava acesso à Herdade, a partir da estrada principal, emergiam
também elas, de raízes ocultas, fustigadas pelo vento incessante.
Tudo no jardim escorria
orvalho. Tudo flutuava pálida e quietamente. Tudo jazia ainda sem vida. Daí a
instantes, um sol mais esbranquiçado tornaria tudo mais nítido. A névoa
dispersaria e o jardim, o casarão surgiriam como um oásis no meio da dolorosa
secura da Planície.
A vida do dia começava
perplexa. Sofia sentia o coração a bater, num alvoroço, atravessado por um
desejo impossível. Continuava à janela perscrutando e escutando o espaço em
frente dos seus olhos como quem descobre uma paisagem pela primeira vez. Hesitava
entre o desapontamento e um encanto difícil – afinal ela nunca saíra daquele lugar verdadeiramente.
Uma certa alegria pairava no
ar. O verão anunciava-se com alguma antecipação e penetrava pelo vazio claro da
janela.
Sofia já se sentira bem viva
naquele lugar. Com pequenas resoluções
tomadas a cada minuto. Já fora colérica e opinativa também. Já fora
mulher. Ali vivera com os pais, ali casara e dera à luz. E depois, sucedera o
que sempre sucede – uma perda lenta. Seu marido morrera num acidente de viação
ainda os seus dois filhos eram crianças. Tornados homens, haviam deixado a
Herdade para se instalarem na Cidade, onde exerciam agora as suas profissões.
Sofia ficara ao abandono, como
os móveis empoeirados do casarão. O seu corpo vivia agora separado dos outros
corpos todos.
Preguiçosa, cansada e vaga, há
muito Sofia deixara de abranger com o olhar a sua própria vida.
Do tempo de solteira guardava
fiapos de memórias – uma época sem homem e sem filhos remotamente gloriosa,
mergulhada num silêncio absoluto.
Poucos fios a ligavam agora ao
mundo. Chocava amiúde com as coisas. Tudo lhe parecia irremediável – a perda, a
velhice, a exclusão. Mas também já não sentia necessidade de ligar-se em
demasia ao passado. Essas memórias causavam-lhe dor. Seria melhor doravante
viver sem um pensamento, um desejo ou uma lembrança.
Os seus dias na Herdade eram
largos e vazios como o casarão. Já não recebia visitas. Só duas vizinhas mais
velhas a visitavam de tempos a tempos, à hora do chá.
Todos os anos, uma prima do
Norte vinha passar umas semanas, no final do Verão, por não suportar o calor
sufocante da Planície.
Quando Celeste partia, a vida no
casarão retomava as suas rotinas e era aspirada novamente pelo vórtice sombrio
do tempo e Sofia preparava-se mentalmente para enfrentar mais um longo e frio Inverno
que não acabaria nunca.
Retomava a sua solidão sem
tristeza em demasia. Já estava avezada àquela vida desde que enviuvara.
Os filhos também a visitavam,
mas os seus afazeres profissionais na Cidade não lhes deixavam muito tempo
livre e nunca permaneciam, na Herdade, mais do que dois ou três dias.
A sofia bastava-lhe agora
apenas viver vagarosamente. Viver numa lentidão trôpega.
Por vezes, antes de se deitar,
ainda espiava o céu, as estrelas ou caminhava um pouco em torno do casarão,
respirando a claridade do ar à tardinha.
Nessas ocasiões, fitava o
campo em seu redor e mergulhava em pensamentos íntimos rapidamente afastados. Era
tão rápida a Vida. Fechava os olhos e quase sentia a maresia vinda da extensa
Planície. As plantas secas e cobertas de poeira do caminho, os campos de girassóis
a perder de vista, os pássaros aquietados nos ramos das árvores. As corujas piando.
O seu coração batia então mais depressa. Sentia-se livre e leve como se
caminhasse ao longo da praia, à beira-mar.
A sua vida era minuciosa e
vaga, repleta de gestos rotineiros e mecânicos, rasa como o vestígio arruinado
de outra vida e só lhe restava seguir cautelosamente vivendo e esperar na manhã
clara pelo final da tarde.
Passeava devagar, prestando
atenção aos seus passos cambaleantes e ao silêncio. Olhava para os próprios pés
muito trôpegos, para uma pedra em que tropeçara ou para um pássaro e depois regressava
lentamente ao casarão e abandonava o corpo na cama, entre os providenciais
lençóis frescos de linho antigo, já sem a menor força, anulando-se sem esforço
após a toma dos comprimidos para dormir.
O seu coração esfriava
paulatinamente e acordava, na manhã seguinte, desapontada e seca, cambaleante
em pequenos passos até se conseguir voltar a erguer erecta.
O ar já se tornava húmido. A chuva
caía sem cessar.
Chegariam depressa os meses em
que ficaria mais sozinha, apenas olhando a chuva. Esses dias eram urdidos de
uma tristeza perfeita – chuva e frio.
E num fechar de olhos mais um
final de ano se aproximava. Talvez os seus filhos a viessem visitar, com as suas
namoradas.
Isso decerto lhe traria
alegria.