“Die Kalte Teufelshand”
Já atingi a idade em que, antes de sair de casa, penso em
vestir umas cuecas em bom estado, para o caso em que se me acontecer algo e tiver
de ser levada de urgência, numa ambulância, para o Hospital, não venha a passar
vergonhas.
Um conselho muito ouvido, da boca de minha mãe a que
nunca prestei – até agora, nenhuma atenção!
Cheguei à idade em que, à noite, caio num sono profundo,
após beber uma chávena de chá de camomila, de que nunca fui grande fã – até agora,
acompanhada de dois soníferos para me atordoar e combater a insónia crónica de
que padeço. Os comprimidos nem sempre fazem efeito.
Estou cheia de maleitas indefiníveis
e por diagnosticar. Ando sem apetite nenhum e perdi muito peso. Se alguém
quisesse desenhar, numa folha de papel, a minha diáfana silhueta de mulher
centenária, bastar-lhe-ia esboçar meia dúzia de traços esguios a lápis de
carvão.
Lá fora, o nevoeiro e um ar
gélido, um frio de rachar que ameaça neve, banha a casa num halo esbranquiçado.
De todos os Invernos de que me recordo, e já são muitos, este Inverno é de
longe o mais hostil. Talvez por o meu corpo já não dispor de reservas de
gordura, nem de energia. Mais pareço um cabide com peles secas dependuradas -
um esqueleto andante!
A casa onde vivo é mais velha
do que eu. Pertenceu aos meus bisavós, depois aos meus avós e passou para os meus pais. Quando estes
faleceram, num acidente de viação, era eu ainda moça, solteira e boa rapariga,
como sói dizer-se, herdei esta casa de aldeia, feita de espessos blocos de
granito. Uma casa à moda antiga, como já não se constroem.
A casa está como eu muito
degradada, com as madeiras a cheirar a mofo e humidade, o soalho cheio de nódoas
e as paredes encardidas com a fuligem da lareira e as cagadelas de gerações de
moscas. As portas dos armários feitos à medida rangem desengonçadas. Algum
mobiliário já foi atacado pelo bicho da madeira que deixa pequenas montanhas de
poeira castanha, espalhadas pelo chão. Na cozinha, o chão está revestido de
linóleo muito deteriorado.
A desarrumação também já não
me afeta, por isso a mesa da cozinha, coberta com uma toalha de plástico
desbotada, está cheia de tralha.
Há anos que que já ninguém me
visita e eu não visito ninguém. Apenas as funcionárias do centro de dia da aldeia vizinha, pagas pela junta de
freguesia me batem, diariamente, à porta para me entregarem as refeições, em
pequenas embalagens descartáveis.
Ainda me lembro da felicidade
que era ter a casa limpa e acolhedora, quando o meu Simão era vivo. Já houve asseio
e ordem nesta casa, outrora. Mas agora, tenho de me conformar, não sou capaz de
ter a casa limpa, pois já não tenho forças para grandes esforços.
Quando relembro os doces
tempos da minha infância e da minha vida de mulher, ao lado do meu marido,
forma-se um novelo de emoções na garganta que dificilmente consigo dissolver.
Na aldeia, longe do resto do
mundo, devem viver uma centena de almas.
Algumas casas estão em ruínas,
outras foram restauradas pelos descendentes, filhos ou netos, dos seus
anteriores proprietários, falecidos há décadas. Eu sou a decana da aldeia. Festejei
em outubro passado, o meu centenário.
No Inverno, o vento uiva nas
chaminés das pequenas casas atarracadas da aldeia. Os telhados são íngremes,
por causa dos nevões e as janelas diminutas. Foram todas construídas, no início
do século passado ou até no século anterior com o material da região – o granito.
É difícil viver aqui no Inverno
e sei bem do que estou a falar.
Quando herdei a casa, eu e o
Simão decidimos casar e deixar o nosso apartamento alugado, na cidade, para nos
instalarmos na aldeia.
Todos os anos, caem aqui
grandes nevões. Temos uma estrada alcatroada que nos traz até ao centro da
aldeia e vários caminhos cheios de sulcos que só se podem percorrer a pé.
A carreira para a cidade, para
lá em baixo, junto à estrada principal e parte de manhã e só volta à tardinha.
A aldeia, por vezes, com as
poucas crianças a ir e voltar da escola e os seus pais a regressar do trabalho,
na cidade, mais parece o subúrbio de uma pequena vila.
Quando nos instalámos aqui,
todos olharam para nós de soslaio, com um ar de reprovação e um misto de desafio
– éramos os citadinos. Hippies excêntricos! Depois, passaram muito rapidamente
a ignorar-nos. O que não nos incomodou nem um pouco.
Deito-me sempre muito cedo. Assim
poupo na conta da luz. Mas acontece-me amiúde ficar acordada, pela noite fora,
apesar dos comprimidos para dormir que já não devem estar a fazer efeito,
recordando a boa vida que vivi, ao lado do meu amor de sempre, o meu belo e generoso
Simão e depois acabo por dormir o dia todo, acordando apenas ao crepúsculo.
Os meses de Inverno são muito
duros. São meses escuros e frios de clausura forçada.
Nada há para fazer nos campos,
nem nas hortas e também não tenho, nem nunca tive, um contacto muito próximo
com os meus vizinhos. Passam-se dias e até semanas em que não vejo nem falo com
ninguém, tirando as funcionárias do centro e nas minhas raras saídas à rua, apenas
troco saudações e meia dúzia de palavras sobre o estado do tempo.
Em fim de contas, não preciso
de conversar senão comigo própria. Fui porventura feita para viver em solidão.
Oh não, esta gente que me rodeia não pertence ao meu círculo de amigos. Esta gente
vive como um bando de primatas e sempre que os encontro, inopinadamente, estão
a dizer mal de alguém, destilando fel em abundância ou a mexericar
desavergonhadamente. São todos farinha do mesmo saco.
Normalmente, deixo a televisão
ligada o dia inteiro. Tenho assim uma companhia desde manhãzinha até que me
farto e a desligo. Ouvir um som constante e difuso é algo que me acalma. A maior
parte do tempo, nem oiço o que se diz nem olho para o ecrã. Sei que há uma variedade de programas à escolha,
nos vários canais, mas acabo por escolher sempre o mesmo e adormeço sentada no
sofá embalada pelas vozes.
Assim passo os dias e as noites,
no meu pequeno universo. A madrugada rapidamente se transforma em crepúsculo. Lá
fora, não há nada, apenas um nevoeiro espesso.
Vivo num crepúsculo perpétuo e
até as vidraças refletem o interior da minha casa e a minha silhueta espectral,
mal acendo a luz.
Com o frio do Inverno, as
minhas maleitas intensificam-se. O meu corpo dói como se os meus ossos tivessem
sido quebrados um a um. Nas pernas, sinto um formigueiro constante e, frequentemente,
tenho cãibras que me tolhem os movimentos, durante longos minutos supremamente
desagradáveis. Doem-me os joelhos e os pés ficam completamente doridos como se
alguém me desse alfinetadas.
Caminho cada vez mais lentamente,
arrastando os pés e coxeando. As maleitas destroem-me o corpo implacavelmente a
cada ano que passa e as minhas defesas diminuem. Já vivi tantos anos!
Há meses que também tenho os
olhos constantemente molhados e choramingões. Terei de me decidir a ir consultar
um oftalmologista, quando regressarem os dias bons. Alguém aqui da aldeia –
talvez o filho da professora – me há-de levar à cidade, a troco de um punhado
de euros para a gasolina. Já não tenho
forças para caminhar até à estrada e apanhar a carreira e deambular o dia todo
pela cidade.
Sou um fantasma feito de dores.
Mas já me habituei a viver com elas.
De qualquer das maneiras, nem
me vale a pena pensar em ir à cidade consultar. Sei que a minha morte é iminente.
Há semanas que ando com o pressentimento de que algo mau está para me acontecer.
Pode muito bem ser a minha
sentença final.
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