Alguma vez os longos e
estéreis dias terminariam?
Se calhar só quando a morte
viesse!
Assim devaneava: e se a morte
for um bluff? Um truque da vida?
O dia começara às três da
manhã. Sempre acordara cedo, mas agora, era a Mulher Insone.
Tinha preguiça, por antecipação,
do longo dia que se seguiria: nenhum compromisso, nenhum trabalho, nenhum dever.
Nem alegria, nem tristeza em demasia.
Sentou-se na poltrona, de
roupão velho e puído, já que também nunca recebia visitas. Mas ficar assim tão
mal-vestida era ideia que não lhe agradava, então, levantou-se e foi vestir uma
blusa de seda azul elétrico e umas calças de ganga. A sua figura realmente
melhorara.
Sentou-se, de novo, na poltrona.
Ela não era nem bonita, nem
feia. Ela era óbvia, banal. Ela não tinha problemas de dinheiro.
E tinha telefone.
Hoje, telefonaria a quem?
Ultimamente, sempre que
telefonava tinha a nítida impressão de
que estava importunando e depois também
havia a falta de assunto. Todos estavam com as suas vidas suspensas. O único
assunto era a pandemia, a perda de emprego, a falta de perspetivas, a
desesperança que crescia com os sucessivos confinamentos.
E se alguém lhe telefonasse?
Teria que levantar-se da poltrona,
mas decerto não seria para a convidarem a ir tomar um chá à Confeitaria
Nacional.
Hoje, não estava para
conversas pessoais. Não atenderia. E além do mais, o telefone não tocava há semanas.
Ainda não voltara a ver-se ao
espelho. Raramente, se via ao espelho. Como se tivesse medo de se ficar a
conhecer demais. E ela comia muito. Engordara. A sua gordura era pálida e
flácida.
Resolveu, para se ocupar um
pouco, arrumar as gavetas da cómoda dos sutiãs e cuequinhas. Sentia-se bem
nessa tarefa de arrumadora de gavetas. Lamentava não ser casada – se o fosse,
se ocuparia também ordenando as gravatas do marido.
Ela sentia-se só. Era uma
criatura inodora e insignificante. Não tinha nem marido, nem filho. Apenas
tinha o gato.
Viu, com grande satisfação,
que já era quase de manhã. Como o tempo afinal passava depressa! Que dádiva
divina essa passagem do tempo, arrumando
gavetas.
Estava na hora de aquecer os
restos do jantar da véspera. O silêncio era pesado. Ouvia-se apenas o barulho
da frigideira, onde fritavam os pedaços de frango sobrantes. Pôs-se a comer. Nada
de sobremesa. Não podia continuar a engordar daquela maneira. Havia milhões de
pessoas com fome. Era obsceno comer sem sentir mal-estar.
Depois, ela ligou a televisão.
Lixo. Pena não fumar, seria esta a hora de
acender um cigarro. Nem olhava para o ecrã. Desligou-a, aliviada.
Resolveu recortar revistas
velhas para se entreter. Há muito tempo que não o fazia. Dariam umas belas
colagens. Era só puxar um pouco pela imaginação.
Em seguida, ferveu água para
fazer chá. Colocava-o na garrafa térmica e bebê-lo-ia, ao longo do dia. O chá
não era engordativo, claro que não!
O telefone continuava sem
tocar. Se ao menos tivesse colegas de trabalho, mas nem sequer já tinha
trabalho!
Bebeu uma taça de chá
fervente, mastigando pequenas bolachas de água e sal que lhe arranhavam as gengivas
sensíveis. Melhorariam com um pouco de marmelada, mas é claro, a marmelada
engordava!
Quando ia comer a terceira
bolacha – ela costumava contar as coisas por três, por uma espécie de mania de
ordem. Aconteceu!
Ouviu o telefone tocar.
Cuspiu, de imediato, os pedaços de bolacha e para não dar a
entender que era uma desesperada, ainda o deixou tocar meia dúzia de vezes, e
cada trino era uma dor aguda no coração, pois a pessoa poderia desligar
pensando que não estava ninguém em casa!
A esse pensamento
precipitou-se e disse, com voz solta :
—Alô?
—Boa tarde. Por favor, gostaria
de falar – disse a voz feminina de uma octogenária, a avaliar pela rouquidão
arrastada – com a Lurdes. Sou a Ana, amiga dela de longa data.
—Minha senhora, lamento, mas
nesta casa não vive ninguém com esse nome.
—Mas essa não é a Travessa da
Fonte?
—É sim, mas que número de
telefone a senhora marcou? Sim, esse é o meu número, mas garanto-lhe que não
mora, nem nunca morou aqui nenhuma Lurdes.
—Mas como não?! Se eu sempre
falei com a minha amiga Lurdes neste número! Peça à Lurdes que venha atender,
por favor!
Dona Ana tinha uma voz de
comando intimidante.
—Aqui não mora nenhuma Lurdes,
minha senhora, já lho disse. Só moro eu.
—E como é o seu nome?
—O meu nome é Margarida…
—É filha ou neta da Lurdes?
—Ah, ah, ah a senhora tem
sentido de humor! Dona Ana, creio que é tempo de desligar porque a esta hora o
meu chá já deve estar gelado e eu gosto de o beber fervente.
—Chá às três da tarde? Pelos
vistos também não sabe a que horas se toma o chá!
—O chá é porque não tenho mais
nada para fazer, mas agora, peço-lhe que desligue o telefone.
—A minha única intenção era
falar com a Lurdes para convidá-la a vir tomar o chá das cinco, como já podemos
sair de casa. Mas… ah! Tive uma ideia. Já que a Lurdes não está, porque não vem
a menina? Que acha? Que acha de vir distrair uma senhora de uma certa idade?
—Minha senhora, não a conheço.
Acho que não…
—Mas como não?!
—Não e se me permite, quem vai
desligar o telefone sou eu, com licença.
Ela sentiu-se aliviada, por um
instante, mas logo estremeceu: e se o
demo da velha tornasse a ligar para falar com a desgraçada Lurdes? Tinha de
tirar, imediatamente, o telefone da ficha.
Sim. O chá ficara gelado. A tarde
estava arruinada. O dia estragado.
Sentia-se infeliz. Então em
vez de beber o chá comeu um biscoito com cobertura de chocolate.
Depois, eram já quatro horas. Depois,
cinco, seis , sete… Oito: hora de jantar!
Ainda restavam pedaços do
frango de ontem e ela aprendera, com a avó, a nunca desperdiçar comida, muito
por causa dos milhões de pessoas que morrem à fome.
Nove horas: já se podia
deitar.
Escovou os dentes, durante três minutos, pensativa. Vestiu uma
velha T-shirt de algodão, meio descozida na zona dos sovacos, e entrou na cama, onde já dormia o gato faz
tempo.
Os olhos teimavam em não
fechar.
Ela era a Mulher Insone. Foi então
que pensou nos comprimidos contra a insónia. Uma pilulazinha era o suficiente
para ter um sono tranquilo. Duas iam fazer mais efeito. Três, era garantido que
dormiria mesmo!
Um dia a menos. Um bom soninho
era só o que precisava. Amanhã seria um novo dia e já nem se lembrava qual …
Aucun commentaire:
Enregistrer un commentaire