mercredi 7 avril 2021

Alguma vez os longos e estéreis dias terminariam?

Se calhar só quando a morte viesse!

Assim devaneava: e se a morte for um bluff? Um truque da vida?

O dia começara às três da manhã. Sempre acordara cedo, mas agora, era a Mulher Insone.

Tinha preguiça, por antecipação, do longo dia que se seguiria: nenhum compromisso, nenhum trabalho, nenhum dever. Nem alegria, nem tristeza em demasia.

Sentou-se na poltrona, de roupão velho e puído, já que também nunca recebia visitas. Mas ficar assim tão mal-vestida era ideia que não lhe agradava, então, levantou-se e foi vestir uma blusa de seda azul elétrico e umas calças de ganga. A sua figura realmente melhorara.

Sentou-se, de novo, na poltrona.

Ela não era nem bonita, nem feia. Ela era óbvia, banal. Ela não tinha problemas de dinheiro.

E tinha telefone.

Hoje, telefonaria a quem?

Ultimamente, sempre que telefonava tinha a nítida impressão  de que estava  importunando e depois também havia a falta de assunto. Todos estavam com as suas vidas suspensas. O único assunto era a pandemia, a perda de emprego, a falta de perspetivas, a desesperança que crescia com os sucessivos confinamentos.

E se alguém lhe telefonasse?

Teria que levantar-se da poltrona, mas decerto não seria para a convidarem a ir tomar um chá à Confeitaria Nacional.

Hoje, não estava para conversas pessoais. Não atenderia. E além do mais, o telefone não tocava há semanas.

Ainda não voltara a ver-se ao espelho. Raramente, se via ao espelho. Como se tivesse medo de se ficar a conhecer demais. E ela comia muito. Engordara. A sua gordura era pálida e flácida.

Resolveu, para se ocupar um pouco, arrumar as gavetas da cómoda dos sutiãs e cuequinhas. Sentia-se bem nessa tarefa de arrumadora de gavetas. Lamentava não ser casada – se o fosse, se ocuparia também ordenando as gravatas do marido.

Ela sentia-se só. Era uma criatura inodora e insignificante. Não tinha nem marido, nem filho. Apenas tinha o gato.

Viu, com grande satisfação, que já era quase de manhã. Como o tempo afinal passava depressa! Que dádiva divina  essa passagem do tempo, arrumando gavetas.

Estava na hora de aquecer os restos do jantar da véspera. O silêncio era pesado. Ouvia-se apenas o barulho da frigideira, onde fritavam os pedaços de frango sobrantes. Pôs-se a comer. Nada de sobremesa. Não podia continuar a engordar daquela maneira. Havia milhões de pessoas com fome. Era obsceno comer sem sentir mal-estar.

Depois, ela ligou a televisão. Lixo.  Pena não fumar, seria esta a hora de acender um cigarro. Nem olhava para o ecrã. Desligou-a, aliviada.

Resolveu recortar revistas velhas para se entreter. Há muito tempo que não o fazia. Dariam umas belas colagens. Era só puxar um pouco pela imaginação.

Em seguida, ferveu água para fazer chá. Colocava-o na garrafa térmica e bebê-lo-ia, ao longo do dia. O chá não era engordativo, claro que não!

O telefone continuava sem tocar. Se ao menos tivesse colegas de trabalho, mas nem sequer já tinha trabalho!

Bebeu uma taça de chá fervente, mastigando pequenas bolachas de água e sal que lhe arranhavam as gengivas sensíveis. Melhorariam com um pouco de marmelada, mas é claro, a marmelada engordava!

Quando ia comer a terceira bolacha – ela costumava contar as coisas por três, por uma espécie de mania de ordem. Aconteceu!

Ouviu o telefone tocar.

Cuspiu, de imediato,  os pedaços de bolacha e para não dar a entender que era uma desesperada, ainda o deixou tocar meia dúzia de vezes, e cada trino era uma dor aguda no coração, pois a pessoa poderia desligar pensando que não estava ninguém em casa!

A esse pensamento precipitou-se  e disse, com voz solta :

Alô?

Boa tarde. Por favor, gostaria de falar – disse a voz feminina de uma octogenária, a avaliar pela rouquidão arrastada – com a Lurdes. Sou a Ana, amiga dela de longa data.

Minha senhora, lamento, mas nesta casa não vive ninguém com esse nome.

Mas essa não é a Travessa da Fonte?

É sim, mas que número de telefone a senhora marcou? Sim, esse é o meu número, mas garanto-lhe que não mora, nem nunca morou aqui nenhuma Lurdes.

Mas como não?! Se eu sempre falei com a minha amiga Lurdes neste número! Peça à Lurdes que venha atender, por favor!

Dona Ana tinha uma voz de comando intimidante.

Aqui não mora nenhuma Lurdes, minha senhora, já lho disse. Só moro eu.

E como é o seu nome?

O meu nome é Margarida…

É filha ou neta da Lurdes?

Ah, ah, ah a senhora tem sentido de humor! Dona Ana, creio que é tempo de desligar porque a esta hora o meu chá já deve estar gelado e eu gosto de o beber fervente.

Chá às três da tarde? Pelos vistos também não sabe a que horas se toma o chá!

O chá é porque não tenho mais nada para fazer, mas agora, peço-lhe que desligue o telefone.

A minha única intenção era falar com a Lurdes para convidá-la a vir tomar o chá das cinco, como já podemos sair de casa. Mas… ah! Tive uma ideia. Já que a Lurdes não está, porque não vem a menina? Que acha? Que acha de vir distrair uma senhora de uma certa idade?

Minha senhora, não a conheço. Acho que não…

Mas como não?!

Não e se me permite, quem vai desligar o telefone sou eu, com licença.

Ela sentiu-se aliviada, por um instante,  mas logo estremeceu: e se o demo da velha tornasse a ligar para falar com a desgraçada Lurdes? Tinha de tirar, imediatamente, o telefone da ficha.

Sim. O chá ficara gelado. A tarde estava arruinada. O dia estragado.

Sentia-se infeliz. Então em vez de beber o chá comeu um biscoito com cobertura de chocolate.

Depois, eram já quatro horas. Depois, cinco, seis , sete… Oito: hora de jantar!

Ainda restavam pedaços do frango de ontem e ela aprendera, com a avó, a nunca desperdiçar comida, muito por causa dos milhões de pessoas que morrem à fome.

Nove horas: já se podia deitar.

Escovou os dentes,  durante três minutos, pensativa. Vestiu uma velha T-shirt de algodão, meio descozida na zona dos sovacos, e entrou na cama, onde já dormia o gato faz tempo.

Os olhos teimavam em não fechar.

Ela era a Mulher Insone. Foi então que pensou nos comprimidos contra a insónia. Uma pilulazinha era o suficiente para ter um sono tranquilo. Duas iam fazer mais efeito. Três, era garantido que dormiria mesmo!

Um dia a menos. Um bom soninho era só o que precisava. Amanhã seria um novo dia e já nem se lembrava qual …

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