A história começa assim:
Saiu de casa para ir ao salão de beleza cortar o cabelo. O Clóvis a
atenderia.
Olhou o relógio. Eram três da tarde. E de repente, lembrou-se que teria de
fazer as unhas dos pés e das mãos e quem sabe uma massagem também.
Apanharia um táxi ou iria a pé?
Apanhar um táxi poderia revelar-se perigoso. Havia que desinfetar todas as
superfícies primeiro. Onde colocaria as mãos? E depois teria de desinfetar
muito bem as mãos.
Iria a pé. Era mais seguro. Até porque não tinha, na carteira, dinheiro,
apenas o cartão de débito e motorista de táxi não costuma aceitar essa forma de
pagamento.
Ela bem sabia que devia ter sempre dinheiro, na carteira, porque nunca se
deve andar sem nenhum dinheiro.
Era o que sempre ouvira da boca da
avó, mulher precavida. Ocorreu-lhe ir levantar dinheiro ao distribuidor
automático, mas agora estava cansada e já não queria.
Era uma tarde de abril e o ar fresco da manhã trazia a promessa de chuva.
Ainda assim, ela achou que era maravilhoso e inusitado ficar de pé, na rua, ao
vento que revolteava os seus cabelos, que o Clóvis – mãos de tesoura – cortaria
muito curtinhos, à garçonete.
Não se lembrava quando fora a última vez que saíra sozinha para o meio da
manada humana. Este momento era único e ela teria ainda, durante a vida outros
milhares de momentos únicos. Assim se tranquilizava.
Pensou: “Tenho dois filhos, uma família, não estou sozinha, estou segura”.
Nutria-se das vagas e grandes esperanças que depositava em seus filhos.
Eles a sustentavam de pé. E depois, não pensava em mais nada.
Estava na rua exposta. Completamente exposta a pessoas de toda a espécie.
Ela – os outros. Era um binómio comprometedor. Ela estava meio atarantada. Há
meses que praticamente não andava na rua. Ia de carro de porta a porta.
No passeio, ouviu duas mulheres comentar: “ O marido foi despedido. Quem
não tem bom emprego, depois de certa idade…”
Não ouvira o fim da frase, mas adivinhava-o. Não. A vida não era bonita
nesta época que se vivia. Se é que algum dia o fora, em outras épocas…
Ela resolveu, deliberadamente, deixar de pensar. Pensamento era visão e
compreensão e ela não queria mais nem ver, nem compreender. Se tivesse que ter
pensamentos, que fossem os mais tolos. Assim: “O que preparar para o jantar?
Vai chover ou não? Devia ter trazido o guarda-chuva!”
Todos os dias fazia uma lista das coisas que precisava fazer – era desse
modo que se ligava ao Tempo vazio e estéril. Simplesmente ela não tinha mais o
que fazer.
A avó dizia-lhe, quando ela era apenas uma criança :” Tens de te esforçar
muito para vencer na vida”. Seria ela, por acaso, uma “vencedora”?
Se vencer fosse estar, em plena tarde, no meio da rua, lutando contra os
seus medos, tendo sobrevivido a uma doença letal e a uma pandemia, isso faria dela uma vencedora? interrogava-se ela.
Que paciência tinha ela que ter com os outros e consigo mesma. Que paciência
tinha que ter para salvar a sua própria pequena vida, a sua miserável pele!
Quis pensar em outra coisa e esquecer o difícil momento. Então, ocorreu-lhe
que sentia sede. Sentia a boca inteiramente seca e a garganta em fogo. E não
tinha água! Esquecera a água!
E não tinha dinheiro, na carteira, para comprar uma garrafa de água, num
café, ao postigo!
Que raiva ! Veio-lhe, inesperadamente, uma vontade assassina: a de matar toda a gente
que cruzava na rua. Ou de dar pontapés nas coisas que
eram obstáculos, na sua marcha lenta e desesperada.
A magia essencial de viver – onde estava agora?
Em que canto do mundo em confinamento?
Silêncio!
Parada na rua.
Ela não tinha dinheiro na carteira, mas como? Se a mola do
mundo era o dinheiro!
No passeio, andrajoso, um homem, já velho, pedia esmola, sentado no chão,
com o seu cão, ali deitado, ao seu lado.
Ela não era dos que passam fome e frio e mendigam para sobreviver. Mas
sabia dessas multidões que engrossavam agora a cada dia, e sabia como os demais
viravam a cara e desviavam o olhar.
Todos sabem, mas todos fingem que não sabem – pensava ela, porque se não
fingirem, sentem um mal-estar opressivo que os impede de viver. Os sensíveis,
claro está. Os outros todos não sentem nada certamente ou apenas nojo e
repúdio. Nem têm capacidade para compreender o que é a pobreza! Nem têm
capacidade para entender nada.
E de repente, assolou-a mais esse pensamento. Na verdade, também ela era
uma mendiga!
Nunca pedira esmola, mas mendigara o amor, e mendigava agora que ainda a
achassem bonita e desejável.
“Sou uma pobre coitada, a única diferença entre mim e um mendigo é que sou
uma remediada. Nem pobre, nem rica. Mas poderia também sentar-me no chão, ao
seu lado, e mendigar, não apenas dinheiro!”
Ela deixara, há muito, de ser a mesma pessoa.
No último ano, carregara o corpo doente e uma ferida, feita com lâmina de
cortar, que a tornara numa deficiente. Um dos seus elementos de atração havia-lhe sido subtraído e para ela,
já nada voltaria ao normal, mesmo quando voltasse – a cicatriz era indelével.
Ela estava precisando agora de um novo destino para a extrair do sono automático
em que vivia.
Finalmente, pensou, antes de se sentar, na cadeira reservada à lavagem do
cabelo, que tudo na sua vida, desde que nascera, parecia macio, mas a verdade é
que tudo era duro e áspero!
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