O relógio marcava três
horas da manhã.
A esta hora, a hora da
insónia dos velhos, a sua cara compunha-se de uma ruga só. A sua boca era um
ricto hediondo e o seu nariz uma forma perdida no tempo. Era um camafeu
original, embutido em ouro puro.
Quanto ao seu corpo, esse, era um esqueleto secular, uma massa informe e
cada osso chocalhava ao menor movimento.
Mas que importava tudo
isto ? Chega-se a uma certa idade e já nada importa do que se foi, é ou
será.
Começa a pertencer-se
a uma nova raça. A raça dos velhos. A raça que já não está no centro do mundo,
mas que se coloca de lado. A raça que vive aos solavancos, passando de casa em
casa, de mão em mão, como um embrulho indesejado.
Maria da Luz vivia agora às temporadas, ora em casa da filha, ora em casa
do filho e passava os dias sozinha, enquanto eles andavam atarefados, esfalfando-se
nas lides das suas intensas vidas. Mas ela não era uma velha qualquer :
tudo fazia para esconder a sua amargura de velha e desde que sentira que o seu
fim estava para breve, tendo há muito ultrapassado a sua data de validade,
deixara de ter medo da vida e, por causa da morte, concedera-se direitos
absolutos.
Se dantes só tinha olhos para dentro, agora, o seu olhar enxergava tudo e
ela via muito mais para fora. A velha apenas fingia que ainda se preocupava com
a vida comezinha e domesticada, mas a verdade é que estava muito mais
interessada nas montanhas, nas nuvens, nos pássaros, nas árvores, no mar, nos
rios…
Era certo que ainda pedia que lhe comprassem o jornal ou assistia às notícias
diárias na TV, mas era só para que os outros acreditassem. A verdade é que ela,
em muitos dias, apenas se preocupava com o seu ritmo respiratório.
Assim que começara a desaparecer para os outros, que só a olhavam de
relance, decidira, inicialmente, alhear-se da estratégia geral do mundo e
traçar o seu derradeiro plano: limitara-se a viver, apenas viver, sem objectivos
de maior alcance, com alguma preguiça e ousadia. Assim se sustentaria até ao
enfim, pensara.
Já conhecera a plenitude. Após duas uniões que haviam terminado em nada e
uma terceira que terminara em amor-adoração, despedaçada pela fatalidade, sabia
que já tivera a plenitude possível e que pouca gente podia como ela afirmar
tê-la conhecido.
Também aprendera que a plenitude, por vezes, não passa de uma explosão e a
seguir é preciso saber viver covardemente. A perda da plenitude sentira-a como
uma ablação e quase morrera de tristeza. Ficara vazia por dentro, como uma
mulher a quem arrancaram o útero e os ovários.
O tempo passara e debilitara a sua saúde
de mulher rija.
Já não lhe eram permitidas grandes proezas. Rapidamente, se encontrou sem
nada para fazer senão respirar. Maria da Luz é tão antiga que faz vez de móvel
velho e mofento que se coloca a um canto recôndito da casa. Já não é mais novidade
para ninguém.
Vivia agora num lazer forçado que, em certos momentos, lhe causava uma dor
lancinante : nada mais tinha a fazer no mundo, senão viver como um gato ou
um cachorro.
Não fazia nada, apenas era velha. E por vezes, isso a deprimia
desesperadamente : não servia mais para nada e nem os filhos a conseguiam
amparar.
Bem sabia que neste mundo não se pode contar com ninguém para nos amparar. Cada
um se ampara sozinho, como pode, por essa vida fora. Cada um só pode contar
consigo mesmo.
Morrer seria agora o feito mais surpreendente. Um feito extraordinário que
nenhuma outra experiência poderia suplantar.
Dentro do ruim e do absurdo que é a vida, a morte, por oposição, era
certamente uma coisa boa e libertadora e quando pensava e falava dela,
vinha-lhe uma sensação evanescente de sombra e de frescor, o barulho de uma
fonte antiga e sorria como uma criança feliz.
Deixaria, finalmente, de passar o tempo sentindo o vazio deste deserto,
mergulhada no nada e mal existindo. Esgotara os seus sete fôlegos de gato. Estava
cada vez mais perto do fim.
Na vida sofrera e vivera muito tempo magoada, esperando com alguma
passividade por um futuro melhor que jamais acontecera. Viver havia sido uma
ferida aberta. E agora não tinha medo da morte. Era preciso não ter medo. Ir em
frente, sempre em frente, rumo à porta de saída, num passo anónimo e
despudorado, isento de desespero.
Ninguém consegue parar o tempo.
Ah ! morrer de repente para não ter tempo de sentir nada. Ter o que se
chama de uma boa morte. Que pensamento benfazejo !
Morrer sem sentir coisa alguma, no meio de um acto de vida, morrer após uma
última inspiração!
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