mercredi 10 mars 2021

 

Conheço a Dona Luzia há décadas. É uma mulher e pêras!

Uma figura reconhecida e prestigiada, no seio da nossa pequena comunidade, composta de uma centena de almas.

A velhota já conta quase oitenta anos, mas é rija e sã como um pêro. Ao longo da sua já longa vida, nunca deu parte de fraca, nunca amoleceu perante as vicissitudes e as agruras da vida, as doenças de familiares e as perdas que sofreu, até ficar sozinha no mundo.

Do conjunto de características, qualidades, defeitos e peculiaridades que distinguem a Dona Luzia de todas as outras velhotas da aldeia, diria que o seu traço de personalidade mais marcante é a hiperactividade.

Dona Luzia nunca põe pé quedo.

Passa os dias nos talhões, em redor de sua casa e espalhados pela aldeia, que transforma em hortas, onde cresce de tudo um pouco: hortaliças e árvores de fruto, ao sabor das estações do ano.

Nada lhe falta e tudo produz em excesso. E quando o tempo não lhe permite cultivar nada e a terra fica em pousio, lança mãos à sua segunda actividade favorita: fecha-se na sua cozinha, onde fabrica em escala quase industrial, bolos, bolinhos, pães e pãezinhos, tortas e tortinhas como se tivesse de alimentar um regimento de hussardos famintos.

Outro seu traço de personalidade marcante é a generosidade. Distribui, por isso, os excessos de víveres, pela aldeia, a quem ela vê que precisa ou a quem lhe caiu nas boas graças. Em troca, recebe dos que ainda algumas coisas possuem ovos, galinhas ou coelhos.

Já perceberam que a Dona Luzia é a figura mais emblemática da nossa terriola, perdida nos montes.

Amiúde me cruzo com ela, nas minhas deambulações solitárias, quando regresso dos trilhos que vou desbravando, pelas moitas, e sempre trocamos dois dedos de conversa amistosa.

Ontem, achei-a muito prostrada e ensimesmada, junto do chafariz de pedra, aproveitando uns raios de sol envergonhados, sob a latada de rosas velhas.

Sei que a Dona Luzia é muito crente e que não falta a nenhuma missa dominical.

Na entrada da sua casa, até criou um pequeno altar, onde se ergue uma estátua de gesso, de alguma dimensão, de uma Nossa Senhora -  que trouxe aquando de uma excursão a Fátima, a derradeira que  fez com o seu saudoso marido, que deus tenha a sua alma -  à frente da qual colocou uma vela benzida, acesa dia e noite, e logo substituída por outra, quando chega ao fim do pavio.

E ainda, todos os dias, às seis e meia da tarde, liga o rádio na Renascença e reza fervorosa e invariavelmente o terço.

Pergunto-lhe , como sempre, como está de saúde, mas desta vez fico apreensivo, pois nunca a vi tão abatida, tirando o ano em que lhe morreu o marido e em que andou uns tempos inconsolável e a chorar pelos cantos.

À minha habitual pergunta, Dona Luzia abana a cabeça e mira-me com uns olhos assustados e hesitantes:

- Ai menino nem queira saber! Estou muito atemorizada! Não sei mais o que aí vem, mas não vai ser coisa boa…

Ontem, fui visitar as freiras ao convento da Póvoa, para lhes levar uns repolhos, que já estão quase a espigar e uns pães que estive a cozer. As pobres coitadas parece que só vivem do que lhes dão as boas almas e há quem diga que já estão a passar fome. Mas olhe a freira que sempre vem ao postigo, buscar as coisas, com o seu carrinho de mão, perguntou-me se eu tinha velas benzidas em casa… que ia precisar delas porque no dia 18, calha numa quinta-feira, já estive a ver no calendário, vai acontecer algo de ruim no mundo. Deus está muito zangado com os homens, e vai haver algo no céu, vai lançar um aviso à humanidade. Vai haver um grande apagão e vamos ficar sem luz durante muitos dias. E vamos precisar de muitas velas. Deve avisar também as pessoas, à sua volta, para que todos rezem muito, disse-me a freira.

Este foi o discurso que a pobre Dona Luzia ouviu e depois do qual não mais ficou a mesma.

Ainda tentei acalmá-la e convencê-la de que a freira está provavelmente muito debilitada física e psicologicamente e que vai ver não vai acontecer nada. Veja quantas vezes já foi anunciado o fim do mundo e ainda cá andamos e ainda acrescentei, jocosamente, que para castigo já bastava a pandemia e que talvez Deus já não tivesse urgência em nos castigar mais do que já fôramos, mas a Dona Luzia não achou grande piada à minha conversa de herege. Olhou para mim de soslaio, como se eu fosse o próprio Anticristo ou o demo feito pessoa.

Na aldeia é sobejamente sabido que não sou de missas, nem de crenças, nem de religiões. O perfeito pagão que goza de um descrédito garantido, em termos religiosos, e que só é aceite, no seio da comunidade, por ser encarado como um ser excêntrico, quiçá necessário, que Deus haverá criado para servir de bitola à medição da fé das suas melhores ovelhas.

Aos olhos da Dona Luzia, a freira histérica é bem mais credível do que eu, homem de nenhuma fé!

A tresloucada freira conseguiu o seu intento: pôs a Dona Luzia em transe e a mim conseguiu, irar-me, ainda que silenciosamente, pela camada de ignorância e de insensibilidade que vislumbrei, da parte de quem é suposto trazer conforto espiritual ao seu próximo.

Estou agora preocupado com a saúde mental da minha pobre vizinha. Ultimamente, não a tenho cruzado em nenhum dos lugares mais concorridos da aldeia, nem me parece que saia já de casa.

Imagino-a a rezar pelos pecados da humanidade, de manhã até à noite, em frente ao seu altar improvisado.

Vou ter de lhe ir bater à porta e garantir que  não lhe acontece nada até ao dia 18, pelo menos!

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