Conheço a Dona Luzia há décadas. É uma mulher e pêras!
Uma figura reconhecida e prestigiada, no seio da nossa
pequena comunidade, composta de uma centena de almas.
A velhota já conta quase
oitenta anos, mas é rija e sã como um pêro. Ao longo da sua já longa vida,
nunca deu parte de fraca, nunca amoleceu perante as vicissitudes e as agruras da
vida, as doenças de familiares e as perdas que sofreu, até ficar sozinha no
mundo.
Do conjunto de características,
qualidades, defeitos e peculiaridades que distinguem a Dona Luzia de todas as
outras velhotas da aldeia, diria que o seu traço de personalidade mais marcante
é a hiperactividade.
Dona Luzia nunca põe pé quedo.
Passa os dias nos talhões, em
redor de sua casa e espalhados pela aldeia, que transforma em hortas, onde
cresce de tudo um pouco: hortaliças e árvores de fruto, ao sabor das estações
do ano.
Nada lhe falta e tudo produz
em excesso. E quando o tempo não lhe permite cultivar nada e a terra fica em
pousio, lança mãos à sua segunda actividade favorita: fecha-se na sua cozinha,
onde fabrica em escala quase industrial, bolos, bolinhos, pães e pãezinhos,
tortas e tortinhas como se tivesse de alimentar um regimento de hussardos
famintos.
Outro seu traço de personalidade
marcante é a generosidade. Distribui, por isso, os excessos de víveres, pela
aldeia, a quem ela vê que precisa ou a quem lhe caiu nas boas graças. Em troca,
recebe dos que ainda algumas coisas possuem ovos, galinhas ou coelhos.
Já perceberam que a Dona Luzia
é a figura mais emblemática da nossa terriola, perdida nos montes.
Amiúde me cruzo com ela, nas
minhas deambulações solitárias, quando regresso dos trilhos que vou desbravando,
pelas moitas, e sempre trocamos dois dedos de conversa amistosa.
Ontem, achei-a muito prostrada
e ensimesmada, junto do chafariz de pedra, aproveitando uns raios de sol
envergonhados, sob a latada de rosas velhas.
Sei que a Dona Luzia é muito
crente e que não falta a nenhuma missa dominical.
Na entrada da sua casa, até criou
um pequeno altar, onde se ergue uma estátua de gesso, de alguma dimensão, de uma
Nossa Senhora - que trouxe aquando de
uma excursão a Fátima, a derradeira que fez com o seu saudoso marido, que deus tenha a
sua alma - à frente da qual colocou uma
vela benzida, acesa dia e noite, e logo substituída por outra, quando chega ao
fim do pavio.
E ainda, todos os dias, às
seis e meia da tarde, liga o rádio na Renascença e reza fervorosa e invariavelmente
o terço.
Pergunto-lhe , como sempre,
como está de saúde, mas desta vez fico apreensivo, pois nunca a vi tão abatida,
tirando o ano em que lhe morreu o marido e em que andou uns tempos inconsolável
e a chorar pelos cantos.
À minha habitual pergunta,
Dona Luzia abana a cabeça e mira-me com uns olhos assustados e hesitantes:
- Ai menino nem queira saber! Estou
muito atemorizada! Não sei mais o que aí vem, mas não vai ser coisa boa…
Ontem, fui visitar as freiras
ao convento da Póvoa, para lhes levar uns repolhos, que já estão quase a espigar
e uns pães que estive a cozer. As pobres coitadas parece que só vivem do que
lhes dão as boas almas e há quem diga que já estão a passar fome. Mas olhe a
freira que sempre vem ao postigo, buscar as coisas, com o seu carrinho de mão,
perguntou-me se eu tinha velas benzidas em casa… que ia precisar delas porque
no dia 18, calha numa quinta-feira, já estive a ver no calendário, vai
acontecer algo de ruim no mundo. Deus está muito zangado com os homens, e vai
haver algo no céu, vai lançar um aviso à humanidade. Vai haver um grande apagão
e vamos ficar sem luz durante muitos dias. E vamos precisar de muitas velas. Deve
avisar também as pessoas, à sua volta, para que todos rezem muito, disse-me a freira.
Este foi o discurso que a
pobre Dona Luzia ouviu e depois do qual não mais ficou a mesma.
Ainda tentei acalmá-la e convencê-la
de que a freira está provavelmente muito debilitada física e psicologicamente e
que vai ver não vai acontecer nada. Veja quantas vezes já foi anunciado o fim
do mundo e ainda cá andamos e ainda acrescentei, jocosamente, que para castigo
já bastava a pandemia e que talvez Deus já não tivesse urgência em nos castigar
mais do que já fôramos, mas a Dona Luzia não achou grande piada à minha
conversa de herege. Olhou para mim de soslaio, como se eu fosse o próprio Anticristo
ou o demo feito pessoa.
Na aldeia é sobejamente sabido
que não sou de missas, nem de crenças, nem de religiões. O perfeito pagão que
goza de um descrédito garantido, em termos religiosos, e que só é aceite, no
seio da comunidade, por ser encarado como um ser excêntrico, quiçá necessário,
que Deus haverá criado para servir de bitola à medição da fé das suas melhores ovelhas.
Aos olhos da Dona Luzia, a freira
histérica é bem mais credível do que eu, homem de nenhuma fé!
A tresloucada freira conseguiu
o seu intento: pôs a Dona Luzia em transe e a mim conseguiu, irar-me, ainda que
silenciosamente, pela camada de ignorância e de insensibilidade que vislumbrei,
da parte de quem é suposto trazer conforto espiritual ao seu próximo.
Estou agora preocupado com a
saúde mental da minha pobre vizinha. Ultimamente, não a tenho cruzado em nenhum
dos lugares mais concorridos da aldeia, nem me parece que saia já de casa.
Imagino-a a rezar pelos
pecados da humanidade, de manhã até à noite, em frente ao seu altar improvisado.
Vou ter de lhe ir bater à
porta e garantir que não lhe acontece
nada até ao dia 18, pelo menos!
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