lundi 15 février 2021


 

Da encarnação.

 

Tal como consigo encarnar, num cão pardo, momentaneamente, também, já consegui, voluntariamente, observar uma pessoa, ao acaso, despersonalizar-me e encarnar nela.

Só preciso de ter cuidado para não encarnar numa existência perigosa ou demasiado atraente, senão pode dificultar-me, sobremaneira, o regresso à minha pessoa.

Essa intrusão que pode ser de minutos, horas ou dias, consoante eu o decida ou deseje, leva-me a conhecer o sujeito nos seus mais ínfimos pensamentos, emoções e sentimentos e é um grande passo para compreendê-lo melhor, até decidir o abandonar e voltar a mim própria.

A escolha da pessoa ou animal a encarnar leva-me a estar num permanente estado de franca curiosidade e de vaga apreensão.

Sou, geralmente, tomada por um deslumbramento total, durante os minutos que antecedem todo o processo da encarnação, pois só assim posso sucumbir à vida que vou experimentar.

Começa então, paulatinamente, o processo de despersonalização, mudam a minha voz, os meus gestos, os meus tiques de linguagem, o meu sotaque, a minha démarche, os meus trejeitos, a minha força de vontade e dirijo-me a par e passo à encarnação do momento, uma usurpação de personalidade que amiúde me deixa exausta e em transe como um bruxo a receber espíritos do além.

Já sei que só daí a algumas horas ou dias, dependendo da força do maravilhamento que se operou em mim, recomeçarei integralmente a ser eu mesma, mas por vezes fico ultrajosamente renitente e levo mais tempo a voltar à minha própria vida.

Pergunto-me se não andarei eu, desde que saí do útero de minha mãe, a saltitar de encarnação em encarnação, por esse mundo fora, sem jamais ter sido pessoa alguma. Quem sabe se a minha própria vida, nunca o foi, e se eu não existo apenas como esse fantasma de outrem, que se incorpora a bel-prazer numa miríade de encarnações sucessivas.

Por norma, escolho encarnar em mulheres bonitas e bem feitas ou homens bem parecidos e atléticos, mas alguns bichos também têm a sua hora quando aparecem esplêndidos no meu radar discriminatório. 

A bem dizer procuro a excelência no excelente. Jamais encarnei em corpos falhos, decrépitos ou doentes.

Ainda hoje, poderia relatar com um jorro de pormenores as emoções íntimas daquela belíssima prostituta com quem me cruzei, ao cair da tarde, numa rua esconsa, em Amesterdão e de como ela hipnotizava os homens apenas olhando-os fixamente ou ainda falar das convulsões da mente atormentada do jovem missionário açoriano, com quem dialoguei, parcimoniosamente, aos meus 20 anos, na sala de refeições de uma pensão barata do Trastevere, em Roma e ainda, da emoção mística e religiosa que me habitou, nos dias que se seguiram à visita ao papa João Paulo II, na sua residência de Castel Gandolfo, em que me encarnei numa linda e franzina freira, que possuía  aquele ar de sofrimento somente apaziguado pela paz de ter uma missão superior para cumprir na vida.

Andei durante um tempo, depois desse episódio, a passear por Roma, com a doçura moral da freirinha, impressa no meu rosto. Toda eu me tornei na moralidade personificada. Vesti imaginárias saias longas e blusas de mangas compridas. Toda eu era o pudor e o preconceito dessa freirinha e olhava para as coxas nuas das romanas, com um olhar reprovador, e corava ao pensar na tentação que representavam para os homens que as olhavam e mandavam piropos em todas as direções.

Passados uns dias, entreguei sadiamente o meu corpo nu e amoral ao sol, numa praia semi-deserta e já nenhum resquício da tensão evangelical da santa moça sobrava em mim.

Provavelmente, esta minha sede de despersonalização e ulterior encarnação, tenha que ver com um desejo incontrolado de minerar todas as emoções e sensações humanas e não humanas, de beber todo o mundo até ficar tonta e embriagada e esquecida do meu próprio circunscrito fantasma, limitado na sua pequenez e insignificância.

Há também aquele cão labrador em cio - recordo agora a custo-, era eu adolescente, que pode ter-me tomado por uma fêmea que podia ser cadela, e me quis cobrir, por instantes, e ao qual a minha mãe teve de dar um valente pontapé, para que me largasse, pois já se havia atirado e pendurado com as patas nas minhas costas, que o deixou a ganir e por quem pela primeira vez sofri essa dor aguda do mau trato no corpo…

 

 


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