Trata-se de uma situação
simples: dizem que há que obedecer.
Se alguém cometer a imprudência
de parar um instante a mais do que deveria, com o intuito secreto de
desobedecer, ficará irremediavelmente comprometido.
Desde o instante em que alguém arrisca, lá fora, a desobediência, haverá uma repercussão agressiva, violenta e funesta.
A esta altura, alguns, sem memória
clara do sucedido, já se perguntam: “Quando ocorreu o facto inicial?”.
O facto é claro.
Já ninguém
sabe quando se deu essa ocorrência do facto inicial.
Sem saber mais como lidar com o relógio, decido já nem o colocar no pulso. Surpreende-me até as pilhas ainda não estarem gastas.
Recolho-me, um pouco ferida por todas as partes.
Cronologicamente, estou suspensa na poeira dos dias, pois já quase ninguém manda notícias de lado algum.
Por vezes, ainda trina o telefone
e durante alguns minutos sou como que salva.
Amo, gratamente, quem me
obriga a pensar em alguma coisa diversa, quem me liberta do ensimesmamento, ainda que
já nada de importante seja mencionado, que já nada haja para contar e que as
palavras não sejam mais do que a sombra dos protestos de outrora.
Algumas pessoas, sem nenhum objetivo
outro do que o instinto de se salvar, começaram a tentar viver mais
intensamente, como se pudessem ainda conectar-se ao destino precedente.
Tornaram-se numa espécie de
merceeiros – pesando afanosamente e a cada momento, o que é e o que não é
importante.
São, na maior parte, desajeitados e
inexperientes na tarefa, outros tateiam modesta ou voluntariosamente, mas cada
qual, pelo seu lado, continua a tentar distinguir o que é e o que não é
essencial.
Tarefa inglória e vã. De nada adianta este aturado esforço de sopesarem.
A trama escapa-nos diariamente.
O presente é obliterado à revelia. Apenas, olhando para o dia passado, chegamos de algum modo à impressão evasiva de ter vivido. E a essa hora também já é de noite.
Fechamos os olhos e o sono não
vem. E o sono é agitado.
E ao fazer o balanço insistente da nossa vida - mesmo incluindo o recente hábito de viver mais
intensamente - o saldo é ostensivamente negativo.
Somos agora um clube de
pessoas anónimas e amorfas, entre milhões iguais, com a exclusiva missão de
obedecer, grata e civicamente.
A passagem descuidada e obtusa
do tempo começa a tornar cada movimento diário algo subversivo e potencialmente desonesto - o tédio apossou-se
dos dias obedientes e a rebelião é iminente.
A vida tornou-se irremediável.
Na verdade, é uma vida como de sonho – nada concreta.
O que é diário e repetitivo
abole a extravagância.
O silêncio de tão calado
assemelha-se à morte.
Temos a água acima da cabeça,
sobrenadamos à tona. Os pés, esses, tocam no fundo, no leito do rio.
São assim os nossos momentos
concretos, dos quais apenas nos queremos safar depressa.
Uma realidade de sonho vivida
a contragosto, sem qualquer promessa de um único prazer perigoso, sem podermos
beber, até nos embriagarmos, de uma qualquer fantasia ou de um qualquer possível futuro.
A pouco e pouco nos
desprendemos indiferentes, já não somos tocados por nada. Nada mais há a dizer.
Somos obedientes, não apenas por gregária submissão, mas certamente por uma aflita superstição. Por tempo indeterminado.
Chega-me tenuemente às narinas o cheiro da rebelião.
Esta manhã, olhei-me (nua) e,
de muito perto, no espelho – deste modo perdendo toda a perspetiva –
e vi uma cara pálida e um corpo mutilado e engelhado, de meia idade (com
cinquenta e tal anos) e vi ainda os meus próprios olhos, doentes, de pálpebras descaídas
e fundíssimas olheiras, cansados de tanto ver e de nada enxergar.
Toquei no fundo, e com a água até ao pescoço, quase perdi pé.
Sorvi a água toda vinda do leito do rio e já sem nenhuma água
que me afogasse, caminhei, expedita, pelo fundo arenoso - com a lepidez de quem
sabe que vai bater com o dedo gordo do pé num calhau e cair de bruços, mais dia menos dia.
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