Novo Lockdown.
Tenho, diariamente, a azeda impressão
de um instintivo mecanismo automático
de afastamento ao Outro.
Olhamo-nos, rapidamente, nos olhos
ou nem nos olhamos de todo, apenas enxergamos,
incomodados, os vultos alheios – de relance,
como mercadoria vendida ao postigo.
Os sorrisos, nos lábios, estão claramente suprimidos,
apenas indiciados em fugazes esgares assustados
(como nos sorriríamos agora se não tivéssemos máscaras?)
A distração, a instabilidade dos outros, a falta de
disciplina
exige de nós, nos passeios, nas filas de espera, uma
espécie de dança
de quadrilha, como num filme do faroeste, mudo e a preto
e branco.
Franzir o nariz, deslocar os óculos e ajeitá-los, dar
piscadelas ou pestanejar
não vão além de íntimas perplexidades, jamais adivinhadas
pelos demais.
Esta capacidade estática e gélida de exprimir sentimentos
para si-próprio,
esta aceitação (im)paciente do estado de permanente
incerteza é
ironicamente, de bom conselho!
As bocas estão cravadas de ansiedade e nervosismo…
Os mais dóceis e bem-comportados, mais dóceis estão,
outros
revoltam-se na constância da incompreensão.
“Como foi isto possível?”
Uma vez ou outra, os momentos são variáveis - contêm mais
alguma coisa,
ainda que os sinta sempre cansativamente cumulativos.
Aos “dias inteiros”, sucedem-se outros “dias inteiros”,
repletos de silêncio
e de mais alguma coisa,
ainda que com uma incalculável sequência de estéreis repetições.
Durante estes meses, em que dei as voltas que foram
precisas
e tive de mostrar a satisfação necessária para me salvar,
deambulei adormecida pela casa, pontapeei raivosamente objetos
e
parti alguma loiça, com o deleite próprio dos alucinados.
Agora, o círculo de minuciosas possibilidades que fui
empilhando
está a mirrar como uma peau de chagrin.
Comecei a ter de decidir, de modo assaz arbitrário,
e sem grandes tergiversações, o que vou ser
durante um “dia inteiro” - uma ansiosa,
incapaz de suportar a confusão?
Uma palhaça feliz, rindo de tudo ou
uma palhaça triste a precisar de amor extra?
À medida que se desbulhou o calendário,
as minhas sucessivas inspirações, ligeiramente
convulsivas,
foram, gradualmente, mudando de nível.
Abandonadas as cogitações temporárias,
cuido de não desequilibrar Toda a construção antecipada.
Ou os “dias inteiros” são horríveis ou
os “dias inteiros” são empolgantes,
segundo desejo que o sejam ou não,
segundo a naturalidade com que recebo, de chofre,
um “dia inteiro” vazio.
Trata-se, é certo, de uma imprevisibilidade permanente.
Mas,
quando tudo falha posso simplesmente decidir não ser
nada,
nem ninguém por um “dia inteiro”.
Simplesmente, não ser.
É este o supremo safanão de liberdade.
Um “dia inteiro” que redima o passado e o futuro.
Um “dia inteiro”, em abstrato, sem um sorriso,
sem uma palavra, sem um pensamento,
sem nada ser, ter ou querer.
Talvez assim possa ver mais claramente o Mundo -
num relance mais profundo e simples da espécie
de Universo em que vivemos;
abolindo meticulosamente o desejo irrealizável,
o ideal inatingível, sem rancor, sem ultraje;
bebendo o elixir do longo sono;
tornando-me uma estátua de gesso, esturricada.
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