Hoje, saí à rua.
Faz tempo que não saía à rua.
Fui andando, à beira mar e olhei
distraída para os edifícios, e as pessoas, ao longe, sem pensar em nada.
Fui-me aproximando da nesga de
mar (que se vê do fundo da minha rua).
A pequena mancha azul foi-se
agigantando, até o meu horizonte não ser mais do que oceano.
Estar distraída de tudo é,
pelos tempos correntes, uma coisa muito rara, quase obscenamente luxuosa. É
estar livre!
Olhei tudo com uma atenção sem
esforço.
Vi tudo e deambulei entre as
rochas, um tanto à toa, como barco desgovernado que perdeu o leme e o rumo.
Caminhando estou livre!
Ia percebendo o contorno de
uns e de outros, desviando-me e afastando-me sem os olhar, e senti-me satisfeita
e densamente leve por uns instantes.
Nada daquilo era meu, mas algo
me pertencia: eu fazia parte de tudo, sem prepotência, superioridade ou glória.
Eu sabia que existia nesse todo.
Pensativa, olhei bem longe
para o horizonte, o mais longe possível, onde a linha se esbate e fica somente
um flou artístico no olhar, e lembro-me de ter pensado: o desafio agora
é conseguir continuar a viver.
Para isso, preciso de não me
deixar tomar pela revolta furiosa, não me entregar desprevenida, com pressa,
amor e raiva, como sempre faço.
Regressei a casa sem vontade e
mal liguei a TV, o pavor me alucinou de novo. O contraponto da beleza do mar –
a fealdade quotidiana vai perseguir-me de novo.
É jogado, a cada momento, na
minha cara nua, o terror da Morte.
Como gostaria de poder andar
pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, sem ser ferida pela constante deceção
da sua feroz brutalidade, da sua grosseria e insulto permanentes.
Ao voltar a casa, a cada
passo, sentia o coração a fechar-se. Sentia-me esmagada por uma laje de betão
que amolgava o meu peito e quase me impedia de respirar.
Assolou-me o sentimento
profundo de vulnerabilidade – de uma criatura só e abandonada, impreparada para
o peso terreno.
Eu sempre me imagino mais
forte e penso que estou pronta para tudo. Faço de quase tudo um cálculo
matemático – mas dá sempre errado. Talvez eu nunca tenha sido boa em
aritmética. Quero somar e multiplicar e acabo diminuindo e dividindo.
E também sempre fui de brigar
muito e sofregamente. Sempre tento
chegar a alguma coisa ou alguém com esse modo errado, nunca cedendo, nem
revendo os cálculos.
Começo agora a entender que
brigando, nos leva, tal como com um cálculo errado, a perder tudo.
Quero que tudo seja amável
como eu o desejo e não como o mundo é verdadeiramente.
Sou uma idealista teimosa que
se ofende ao acaso, dobrada de uma possessiva que se ofusca com brutalidades e
formalismos.
Eriça-me também o terror de
viver na(s) incerteza(s).
Não podia estar mais impreparada
para o filme de terror a que chegaram as nossas vidas.
Controlo com dificuldade o
grito que vive no fundo da minha garganta há tempo demais e estilhaço-me amiúde,
em pânico profundo, como um pássaro aprisionado, que se mata contra os vidros da
janela, na casa onde entrou esvoaçando, por engano.
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