Todos as manhãs, acordo do
sono possível e volto-me,
dócil e obediente, para o
abismo da desordem e do caos.
Os outros, honestamente – já mal
os conheço.
Sumiram da minha vida, sem
deixar traços em mim e
fica-me deles, apenas uma imagem,
recoberta com o musgo da
invernia e da distância.
Dentro de dias, faço anos e o
momento de festa,
por que espero o ano inteiro,
virou agora um silêncio
meio acanhado e desamparado,
quase aflito.
Estou reduzida a não fazer nada.
Nem mesmo celebrar o dia!
As coisas são assim mesmo,
dizem-me.
Os sentimentos não são mais do
que a água de um instante.
Ora leve, ora mole, ora dura.
A água de hoje quase pode morder
uma pedra e deixá-la a sangrar.
Já nos habituámos.
A tudo nos
habituamos.
E de qualquer forma, os
sentimentos crucificam-nos sempre um pouco.
Melhor abolir os sentimentos! dizem-me.
Quando dermos por ela, a água
será já outra.
Por isso, vivo dias de
resignação constrangida e de indignação silenciosa.
As coisas são assim mesmo, dizem-me.
O silêncio cresce.
Estamos reduzidos a não fazer
nada. O susto é profundo.
Está encerrado o sentimento.
Quando recuamos, um passo que
seja, rapidamente,
batemos na parede intransigente
e impassível da desesperança.
No espelho, as olheiras
arroxeadas dão-me o ar mais obstinadamente fatigado.
O olhar de quem olha em frente
e só descortina o mesmo deserto,
no qual continuará a errar, bem
devagar.
Em silêncio, também a
decomposição, dentro de mim,
vai avançando, paulatinamente
e com lentidão.
Talvez tenha de voltar à
agonia do meu nascimento,
nascer de outro parto e largar
no chão o corpo antigo.
Estou a entregar-me ao
processo.
Afinal, somos sempre aquilo
que tem de acontecer.
Não sem dor!
Pois o processo é difícil –
uma espécie de agonia lenta e silenciosa,
quase imóvel.
A deformação dá-se sempre com
grande vagar, dizem-me.
Há que despir o velho corpo
como se fosse um fato já gasto.
É preciso coragem, depois,
para se arrumar o velho fato no fundo da gaveta.
Exige força.
Após um hipotético renascimento
bem-sucedido,
temos de nos ir escolhendo, de
entre as mil coisas que podemos vir a ser.
É preciso separar o trigo do
joio, dizem-me.
A escolha, também ela, é difícil.
Há todo um trabalho de
despojamento.
Longo. Penoso. Lento. Incerto.
Inseguro.
Sopesar o peso das coisas, não
tem hora certa, para começar nem acabar.
Por vezes, dura mesmo o tempo
da vida.
Ora se erra, ora se acerta,
dizem-me.
Por vezes, o diabo empurra você
nas escadas e
um anjo apanha, para você não
se machucar,
para não danificar a sua nova
forma.
Ontem mesmo, isso me aconteceu!
Por vezes, não resta tempo
para mais nada e
há que baixar as expectativas,
deixar-se propositadamente arrastar,
pelo vento ou flutuar à
deriva, à tona de água.
Como folha morta ou poeira ou
pena ou papel.
Há que simplificar e deixar o
tempo cuidar de tudo – dizem-me,
até que venha outro dia e que
o mundo pareça de novo uma nesga chata.
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