mardi 26 janvier 2021

 


 

Todos as manhãs, acordo do sono possível e volto-me,

dócil e obediente, para o abismo da desordem e do caos.

Os outros, honestamente – já mal os conheço. 

Sumiram da minha vida, sem deixar traços em mim e

fica-me deles, apenas uma imagem,

recoberta com o musgo da invernia e da distância.

 

Dentro de dias, faço anos e o momento de festa,

por que espero o ano inteiro, virou agora um silêncio

meio acanhado e desamparado, quase aflito.

Estou reduzida a não fazer nada. 

Nem mesmo celebrar o dia!

As coisas são assim mesmo, dizem-me.

 

Os sentimentos não são mais do que a água de um instante.

Ora leve, ora mole, ora dura.

A água de hoje quase pode morder uma pedra e deixá-la a sangrar.

Já nos habituámos. 

A tudo nos habituamos.

E de qualquer forma, os sentimentos crucificam-nos sempre um pouco.

Melhor abolir os sentimentos! dizem-me.

Quando dermos por ela, a água será já outra.

 

Por isso, vivo dias de resignação constrangida e de indignação silenciosa.

As coisas são assim mesmo, dizem-me.

O silêncio cresce.

Estamos reduzidos a não fazer nada. O susto é profundo.

Está encerrado o sentimento.

Quando recuamos, um passo que seja, rapidamente,

batemos na parede intransigente e impassível da desesperança.

 

No espelho, as olheiras arroxeadas dão-me o ar mais obstinadamente fatigado.

O olhar de quem olha em frente e só descortina o mesmo deserto,

no qual continuará a errar, bem devagar.

Em silêncio, também a decomposição, dentro de mim,

vai avançando, paulatinamente e com lentidão.

 

Talvez tenha de voltar à agonia do meu nascimento,

nascer de outro parto e largar no chão o corpo antigo.

Estou a entregar-me ao processo.

Afinal, somos sempre aquilo que tem de acontecer.

Não sem dor!

Pois o processo é difícil – uma espécie de agonia lenta e silenciosa,

quase imóvel.

A deformação dá-se sempre com grande vagar, dizem-me.

 

Há que despir o velho corpo como se fosse um fato já gasto.

É preciso coragem, depois, para se arrumar o velho fato no fundo da gaveta.

Exige força.

Após um hipotético renascimento bem-sucedido,

temos de nos ir escolhendo, de entre as mil coisas que podemos vir a ser.

É preciso separar o trigo do joio, dizem-me.

A escolha, também ela, é difícil.

Há todo um trabalho de despojamento.

Longo. Penoso. Lento. Incerto. Inseguro.

 

Sopesar o peso das coisas, não tem hora certa, para começar nem acabar.

Por vezes, dura mesmo o tempo da vida.

Ora se erra, ora se acerta, dizem-me.

Por vezes, o diabo empurra você nas escadas e

um anjo apanha, para você não se machucar,

para não danificar a sua nova forma.

Ontem mesmo, isso me aconteceu!

 

Por vezes, não resta tempo para mais nada e

há que baixar as expectativas, deixar-se propositadamente arrastar,

pelo vento ou flutuar à deriva, à tona de água.

Como folha morta ou poeira ou pena ou papel.

 

Há que simplificar e deixar o tempo cuidar de tudo – dizem-me,

até que venha outro dia e que o mundo pareça de novo uma nesga chata.

 

Aucun commentaire: