Olho para trás com um só olhar, curto e indivisível.
Um olhar nada complacente.
Parecem ter-se passado três milénios e eu passei já por vinte infernos
(o meu corpo mutilado e o meu espírito antigo assim o atestam).
Nada, porém, se mantém durante muito tempo no presente e,
dos dias idos, restam apenas algumas ténues lembranças,
tal é a pressa quase supersónica de tudo olvidar, de tudo enterrar bem fundo,
sem deixar rasto que se veja.
Quando morrer, tirarão de mim toda a matéria inerte qu’encapsula esta
carcaça supersensível, fiel e dorida depositária de um silêncio, a que presto
agora mais atenção, em torno do qual avanço, com cuidado.
Ainda estou viva, mas quando morrer,
é óbvio que quero que tirem tudo de mim, com o mesmo máximo cuidado ou não
podendo, queimem minhas penas, até que se reduzam a cinzas.
Posso afiançar-vos, com alguma segurança, que o meu ‘eu’ de décadas não
existe mais.
Como a luz das estrelas já mortas, ele sumiu do firmamento.
Ao meu novo ‘eu’ dedico este (re)começo.
Esta primeira vez em que abro os olhos, sobre este ser suspenso, que teima
agora em não pousar em parte nenhuma e mal pousa já levanta voo outra vez.
Olho para o meu ‘eu’ atual com uma atenção voluntariamente superficial, um
tanto oblíqua, mas suficiente.
Tomo todo o cuidado para não aprofundar em demasia, não entender em
excesso, não cair no desmesuramento, para não quebrar o que importa – o Mistério!
Olhar para lá da superfície é sempre profundamente errado. É perigoso
demais.
Viver uma vida mundana é que está certo!
Não se deixar afetar, nem tocar por nada, está certíssimo!
Ser um projétil voluntariamente parado, é sábio.
Idealização? Jamais. Meditação? Nunca. Compreensão? Isso fere. Pensamento?
Isso é vão.
Nunca lutar contra si próprio e, por extensão, contra outrem, é um dom, invisível
a olho nu.
Há que alcançar a todo o custo essa penosa espontaneidade ou voltar a ela,
porque certamente ela já foi nossa outrora.
Não viver foragida, por estar sempre adiantada para esta época.
Deixar de ser uma medíocre revolucionária – abdicar desse disfarce grotesco!
Estas são as leis gerais dos que querem continuar (sobre)vivos.
E também eu, como os demais, não quero morrer para a (sobre)vida.
Com o tempo, sei que me vou tornar imortal e o mundo ficará nu, logo, devo
esgotar o assunto.
Esgotarei o perigo da veracidade inatingível da beleza, só visível para os
iniciados.
Este é o modo de (sobre)vivência do qual hei-de escrever as linhas gerais.
(Sobre)viver é a salvação acessível.
Pois parece que viver já não existe, já foi.
Viver leva demasiadas vezes à morte.
(Sobre)viver é manter a luta contra a vida que é potencialmente mortal.
(Sobre)viver é um constrangimento, mas é necessário, ainda que não
garantido.
Deve-se cumprir, ainda que doa estar (sobre)vivo sem se ter escolhido, sem
ser-se tido ou achado.
Fui uma escolhida, sem senso da realidade, e nasci a susto e desarvorada.
Alguém interrompeu o meu devaneio intrauterino, o meu grande sono beato.
Desde que nasci, vivo como num sonho e/ou pesadelo.
Sofro de um mal desconhecido, como se tivesse vindo ao mundo com o erro
dentro de mim, um erro de programação, nunca sei bem o que sinto, etc.
Etc., etc., etc., é a marca da profusão de ‘eus’ que pululam na minha vida
interior.
A minha vida interior levou-me a agir como se entendesse.
Qualquer ameaça contra algum dos meus ‘eu’ e grito logo «Escândalo» feito
uma doida.
Sou profundamente tonta, míope e obcecada. Como poderia eu ter-me entendido
ou ao mundo com tanta contradição inútil de tragédia moderna?
Nunca servi sequer a mim-própria.
O meu destino humano universal é provavelmente mais importante do que os
meus ‘eu’.
A sedimentação da minha vida pessoal (ultra)passada deixou de me interessar.
Já não reconheço nada do que havia dentro de mim, nem mesmo fora de mim.
A Metamorfose interior está-se fazendo devagarinho. E simultaneamente, lá
fora, tudo arde também e a fuligem cobre a terra de cinzas acres.
Começo por expurgar aquilo em que não consigo mais crer.
Estou sem forças para poder seguir acreditando nas teses que tão soberbamente
defendi.
Vão morrendo, à petit feu.
Olhei de mais para dentro e para fora e agora, exausta e exangue, estou adormecendo.
Mas não desejo sacrificar-me.
Apenas optei por ser menos do ‘eu’ infeliz, perdido e martirizado.
Dei tréguas a esse ‘eu’ desgraçado, constantemente crucificado, alienado e
ensimesmado.
A tarefa hercúlea deste novo ‘eu’ é entregar-se, sem pejo, à vida comezinha.
Tem de queimar as iluminuras a que estava servindo devotamente, rasgar a
pele preciosa que possuía, deixar de pensar no prazer como um dom que apenas lhe
servia para distração e anestesia dos sentidos.
Doravante, o seu trabalho inexcedível de sapa é o de viver as dores e os
prazeres indispensáveis.
É necessário que este novo ‘eu’ se cinja apenas à austera modéstia que representa
a (sobre)vivência.
Fiquem sabendo que a dor é perfeitamente sobreponível ao prazer.
A dor é doravante um destino sem disfarces, servindo sem glória de função
maior.
É categoricamente necessário que eu seja uma ocupada e uma distraída de
outra índole, sem qualquer tipo de ambições.
Tenho de abster-me de me destruir, de me consumir, de me dissimular
orgulhosamente, ao querer participar sempre um pouco mais de coisa nenhuma.
Poucos suportam perder todas as ilusões.
Eu fazia parte deste bando até há pouco.
Voluntariei-me, desde cedo, para a ilusão do amor, pensando, ingenuamente,
que ele enriqueceria a minha vida pessoal e colmataria a irremediável ferida da
solidão.
Foi o contrário!
Descobri, finalmente, a incomensurável pobreza em que vivi até hoje.
Amar é verdadeiramente não ter nada. Nem a si-próprio.
É a desilusão total do que se pensava ser a essência do próprio amor.
E não é nenhum prémio, nem nenhuma exceção honrosa.
É tão somente o castigo supremo!
Da vida, poucas instruções recebi. Ou talvez não as compreendi.
Senti-me amiúde sem apoio.
Por vezes, revelou-se intolerável não ser compreendida e não ter
explicações.
A raiva dessa revolta consumiu-me mais do que tudo.
A minha profunda inocência, a inefável ingenuidade, a minha aparente
coragem em buscar a verdade, que era uma tolice sem nome, o meu desejo de
lealdade que nem sempre foi uma coisa limpa - as escolhas não eram óbvias; apenas me dificultaram um pouco mais a vida.
Quase sucumbi aos seus golpes impiedosos.
Sei agora que (sobre)viver pode ser extremamente tolerável.
(Sobre)viver também ocupa e distrai de formas insuspeitas.
Por vezes (sobre)viver, até faz rir.
É este o Mistério tão tardiamente descoberto.
Ter a necessária modéstia de (sobre)viver apenas.
Tornar-se num meio e não um fim.
Ser maliciosamente livre e aproveitar tudo.
Beber do copo e do cálice, até ao fim.
Usufruir do tempo que resta en sursis.
Usar esse tempo para prazeres e dores ilícitos, inteiramente esquecida da(s)
miséria(s) do Universo.
Esta terá de ser a minha simplicidade futura para uma (sobre)vivência
conseguida e feliz.
Esta terá de ser a minha nova liberdade.
O meu emprego consistirá em diariamente esquecer.
Esquecer o(s) meu(s) erro(s).
Esquecer a minha má fortuna.
Esquecer o(s) meu(s) amor(es) ardente(s).
Esquecer a minha mão trémula.
Esquecer a minha revolta e a minha preciosidade.
Esquecer o meu corpo mutilado.
Esquecer os abusos de confiança.
Esquecer as traições.
Esquecer o coração devoto, batendo demasiado de emoção e de adoração
possessiva.
Esquecer para dormir o sono dos justos.
Dormir o sono dos justos por saber que a minha vida ociosa e extremamente
fútil tampouco atrapalha a grande marcha do Universo.
Por devoção à excelsa (sobre)vivência, devo entregar-me sem delongas ao meu
interesseiro esquecimento.
Hoje, olho para o horizonte e não vejo nascer o sol.
Da linha de horizonte, ou não vejo nada ou só vejo o ocaso.
Ainsi soit-il!