Dona Aurora acaba de passar por mim na rua principal da aldeia, de xaile,
lenço e vestido negros, arrastando-se como um fantasma mirrado, de olhar vazio.
Na semana passada, o lugarejo foi abalado pelo fait divers mais recente,
que ainda não deixou de assombrar as conversas dos aldeões que se reúnem, ao
cair da tarde, no café improvisado pelos mordomos deste ano, na antiga
escola primária.
Anselmo, vinte e seis anos de idade, filho da terra e da D. Aurora foi
a enterrar há dias. Ó Destino miserável clamam em uníssono! Ó tragédia
infame!
Na propriedade onde o rapaz passara o dia a enfardar feno, dizem, ainda existem
vestígios da poça de sangue que ensopou a terra, nutrida do seu corpo
triturado. Os três ajudantes que havia recrutado, alegadamente, haviam desligado
a máquina assim que deram conta do seu desaparecimento. Do pobre rapaz despedaçado
só restou inteiro um ténis, com os atacadores deslaçados.
Conjecturas houve. Que o rapaz era meio alcoólico e desleixado. Que também se
drogava. Que os rapazes que empregava eram uns larápios e drogados da pior
espécie. Que ele próprio já afirmara que eram perigosos quando lhes faltava o
dinheiro para a droga.
Seguiu-se a investigação criminal. Factos foram apurados e de repente, a
narrativa mudou de figura e deslindou-se a maquinação. Anselmo fora afinal alvo
de um complot abominável.
Os três da vida airosa precisavam de dinheiro para a dose. Anselmo recebera
nessa manhã quinhentos euros que metera na carteira defronte dos meliantes, aspirantes a homicidas. Os quinhentos euros foram encontrados na carteira dum deles.
Tudo indica que o Anselmo fora atirado para a enfardadora. A tragédia foi
qualificada de homicídio com premeditação. Fait divers hediondo.