mardi 12 octobre 2010

«Essa noite, contou o Meritíssimo, deve ter sido a última em que vimos o manco, trancado em casa a insultar-nos entre fungadelas, quebrando louças e ferrando couces nos móveis, enquanto o petromax modelava as trevas e trazia à superfície da luz, ao balouçar do vento, objectos imprevistos que a maré do dia abandonara, cestos, alguidares, uma pantufa solitária no degrau da porta, as molas da roupa pousadas como pássaros na corda de secar, pobres restos domésticos que adquiriam, no meio do oscilar das sombras, a inesperada importância do recheio dos galeões espanhóis, recuperados por sapos de borracha que sopravam bolhinhas com garrafas de metal às costas. Mesmo aos domingos, que era a altura da semana que o coxo escolhia para sachar a horta, o quintal permanecia deserto, com os tomateiros a adoecerem nos caniços e as margaridas a transbordarem dos canteiros, as cortinas evaporavam-se das janelas trancadas com portadas de madeira, um capim de abandono roía as últimas alfaces e insinuava-se nas falhas do reboco, ameaçando os quartos e as suas cantoneiras de chícaras desemparelhadas e cálices facetados de licor, as fotografias de sargentos, de damas feias e de bebés em almofadas, e a cama em que o aleijado se estendia, de olhos no tecto, com um bule de lúcia-lima à cebeceira, a aguardar que os arbustos, nascidos do soalho, se lhe cerrassem sobre a boca e principiassem a rebentar-lhe a pele com a faquinha dos espinhos.»

in Tratado das Paixões da Alma, de António Lobo Antunes

2 commentaires:

myra a dit…

nao conhecia nao conheço, mas é otimo!!!obrigada pelos comentarios, minha querida

ma grande folle de soeur a dit…

é um dos melhores escritores portugueses de sempre :) obg Myra