Micro-conto

Após várias noites mal dormidas, ganha-se a defensável sensação de planar no ar. O espírito adeja, o corpo levita como se fosse de uma leveza sustentável... como se se transmutasse num diáfano ser ex machina caído no lodaçal terreno, arrastando-se mediocremente. O sorriso transforma-se num rictus forçado! Os gestos são (sono)lentos. Qualquer ruído soa ao ribombear atroz de tambores gigantes; qualquer toque humano bafeja uma ameaça e faz exir as grifas. O aturdimento é abertamente avassalador!..

Hoje foi o dia que se seguiu às desditosas noites. No táxi para a Estação, porém, rio quase escancaradamente ao reler esta anotação de mais uma efabulação do pequeno S. : " Esta bola de berlim é indecente. Tem uma racha ao meio, é diferente das outras, e em vez de ser afirmativa é negativa! E tem creme por dentro. As bolas sem racha não têm creme! Porque é que esta é diferente das outras?!".

Chego ao Cais para apanhar o comboio das 16H00. O meu moto é chegar a casa e dormir, dormir, dormir... Chego ao cais e surge, perante os meus olhos incrédulos, uma ninfeta arvorando um vestido de noiva imaculado, segurando nas mãos, suas pequeninas mãos um bouquet com flores rosa fuschia... a seu lado o putativo noivo e pasmo, um roqueiro e uma espécie de Jacinta... Uma velha passa por nós e exclama, em surdina, perante este espectáculo inédito e peculiar: "É alguma espécie de Propaganda?!"... Propaganda... Profanação... Sacrilégio... A vida é uma Propaganda e precisamos de entretenimento diário!

Penso agora nas bolas de berlim com e sem racha... Penso na época dourada de Simone de Beauvoir e na sua relação desequilibrada, icónica e algo destrutiva com Norman Mailer... Penso no meu cansaço, no meu moto... Penso em tudo isto sem nexo, sem plexo, sem sexo... sem trama. Nada chega a ser verdadeiramente intimidante, nada chega a ser suficientemente estimulante... Mera Propaganda!