mercredi 20 août 2025

Fleur de cicatrice


 

MUTH

As noites são infindáveis e não consigo conciliar o sono.
Em meses completarei sessenta anos de idade. Defronte do espelho, entretenho-me a contemplar a minha face e a compará-la com a que ali vi quando era apenas uma mulher de vinte anos, espiando as alterações do meu rosto.
Tantos anos decorridos. Será possível que eu esteja igual ao que era ontem?
Levanto-me todos os dias a custo e com indiferença. Tal como as plantas esgotam a terra e o ar do jardim, o corpo esgota o viço da mocidade.
As primeiras partes da minha vida estão preenchidas; irei agora principiar a última.
Não receio totalmente a velhice, porque a velhice tem as suas compensações. Em cada ano se ganha mais dignidade e o respeito dos outros. Também não me assusta perder a beleza, pois consinto em deixá-la alterar-se de ano para ano. Há muito tempo que perdi o colorido da juventude, ainda que a minha pele continue delicada.
Vivo numa casa acanhada e edificada sobre areia e sei que tristezas futuras hão-de assolar-me com extrema solicitude. Resigno-me à aceitação do inevitável.
O insuportável carrasco do tempo arrasta-me pelo pó e corta o meu corpo em postas. O peso da vida é incomensurável desde que me conheço - desde tempos imemoriais.
Já não há pressas para as simbólicas esperanças. Vivo no âmago de repetidos silêncios. Sou agora juíza de todas as deliberações e declaro solenemente que o banquete findou.
A fadiga domina-me. Sinto dificuldade em relaxar os músculos. Sou uma flor emurchecida. Ando cismada nas vantagens e desvantagens da minha pobre sabedoria.
Como gostaria de me aquietar indolente, sem pensamentos nem esperanças e de cair num sono profundo, sem um único sonho. Anseio pertencer-me toda inteira a mim mesma. Preciso disso como o luar precisa do mar escuro.
Decorrem as horas e os dias como se andasse desintegrada do meu corpo; vagueio em desassossego no espaço, sem fito algum.
Ninguém me visita, ninguém me procura. Magoam-me os pés as antigas pedras que pisei nos vários caminhos que atravessei.
Sinto a humidade do ar, a chuva miúda que tomba nos meus braços nus e oiço a sua música suave nas folhas das árvores e do relvado. Avanço descalça.
Se ao menos a minha alma fosse simples, não me afadigaria nunca e diria: Ah! Como o dia está bonito!.. fosse qual fosse e sentiria paz.
Em vez disso, sou uma serva e os diabos andam à solta, em volta de mim, dando amplas gargalhadas. 
Tenho a alma vazia, desterrada, solitária. Fecho os olhos e só oiço o silêncio. Quão isolada estou!
As noites, sobretudo essas, deixam-me perplexa.
É possível que um deus anão ou um gigante maligno me tenha roubado a alma ao corpo e o meu corpo se tenha vingado, torcendo-me a alma, desfigurando-a e afundando-a. Os sintomas são tão evidentes. Ora é sabido que corpo e alma nunca deveriam apartar-se.
Olho-me de cima, dependurada no tecto e vejo o que pareço. 
Um peixe no anzol!..