dimanche 31 janvier 2021


 

Hoje, saí à rua.

Faz tempo que não saía à rua.

Fui andando, à beira mar e olhei distraída para os edifícios, e as pessoas, ao longe, sem pensar em nada.

Fui-me aproximando da nesga de mar (que se vê do fundo da minha rua).

A pequena mancha azul foi-se agigantando, até o meu horizonte não ser mais do que oceano.

Estar distraída de tudo é, pelos tempos correntes, uma coisa muito rara, quase obscenamente luxuosa. É estar livre!

Olhei tudo com uma atenção sem esforço.

Vi tudo e deambulei entre as rochas, um tanto à toa, como barco desgovernado que perdeu o leme e o rumo.

Caminhando estou livre!

Ia percebendo o contorno de uns e de outros, desviando-me e afastando-me sem os olhar, e senti-me satisfeita e densamente leve por uns instantes.

Nada daquilo era meu, mas algo me pertencia: eu fazia parte de tudo, sem prepotência, superioridade ou glória. Eu sabia que existia nesse todo.

Pensativa, olhei bem longe para o horizonte, o mais longe possível, onde a linha se esbate e fica somente um flou artístico no olhar, e lembro-me de ter pensado: o desafio agora é conseguir continuar a viver.

Para isso, preciso de não me deixar tomar pela revolta furiosa, não me entregar desprevenida, com pressa, amor e raiva, como sempre faço.

Regressei a casa sem vontade e mal liguei a TV, o pavor me alucinou de novo. O contraponto da beleza do mar – a fealdade quotidiana vai perseguir-me de novo.

É jogado, a cada momento, na minha cara nua, o terror da Morte.

Como gostaria de poder andar pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, sem ser ferida pela constante deceção da sua feroz brutalidade, da sua grosseria e insulto permanentes.

Ao voltar a casa, a cada passo, sentia o coração a fechar-se. Sentia-me esmagada por uma laje de betão que amolgava o meu peito e quase me impedia de respirar.

Assolou-me o sentimento profundo de vulnerabilidade – de uma criatura só e abandonada, impreparada para o peso terreno.

Eu sempre me imagino mais forte e penso que estou pronta para tudo. Faço de quase tudo um cálculo matemático – mas dá sempre errado. Talvez eu nunca tenha sido boa em aritmética. Quero somar e multiplicar e acabo diminuindo e dividindo.

E também sempre fui de brigar muito e sofregamente.  Sempre tento chegar a alguma coisa ou alguém com esse modo errado, nunca cedendo, nem revendo os cálculos.

Começo agora a entender que brigando, nos leva, tal como com um cálculo errado, a perder tudo.

Quero que tudo seja amável como eu o desejo e não como o mundo é verdadeiramente.

Sou uma idealista teimosa que se ofende ao acaso, dobrada de uma possessiva que se ofusca com brutalidades e formalismos.

Eriça-me também o terror de viver na(s) incerteza(s).

Não podia estar mais impreparada para o filme de terror a que chegaram as nossas vidas.

Controlo com dificuldade o grito que vive no fundo da minha garganta há tempo demais e estilhaço-me amiúde, em pânico profundo, como um pássaro aprisionado, que se mata contra os vidros da janela, na casa onde entrou esvoaçando, por engano.


 © Saul Leiter

mardi 26 janvier 2021

 


 

Todos as manhãs, acordo do sono possível e volto-me,

dócil e obediente, para o abismo da desordem e do caos.

Os outros, honestamente – já mal os conheço. 

Sumiram da minha vida, sem deixar traços em mim e

fica-me deles, apenas uma imagem,

recoberta com o musgo da invernia e da distância.

 

Dentro de dias, faço anos e o momento de festa,

por que espero o ano inteiro, virou agora um silêncio

meio acanhado e desamparado, quase aflito.

Estou reduzida a não fazer nada. 

Nem mesmo celebrar o dia!

As coisas são assim mesmo, dizem-me.

 

Os sentimentos não são mais do que a água de um instante.

Ora leve, ora mole, ora dura.

A água de hoje quase pode morder uma pedra e deixá-la a sangrar.

Já nos habituámos. 

A tudo nos habituamos.

E de qualquer forma, os sentimentos crucificam-nos sempre um pouco.

Melhor abolir os sentimentos! dizem-me.

Quando dermos por ela, a água será já outra.

 

Por isso, vivo dias de resignação constrangida e de indignação silenciosa.

As coisas são assim mesmo, dizem-me.

O silêncio cresce.

Estamos reduzidos a não fazer nada. O susto é profundo.

Está encerrado o sentimento.

Quando recuamos, um passo que seja, rapidamente,

batemos na parede intransigente e impassível da desesperança.

 

No espelho, as olheiras arroxeadas dão-me o ar mais obstinadamente fatigado.

O olhar de quem olha em frente e só descortina o mesmo deserto,

no qual continuará a errar, bem devagar.

Em silêncio, também a decomposição, dentro de mim,

vai avançando, paulatinamente e com lentidão.

 

Talvez tenha de voltar à agonia do meu nascimento,

nascer de outro parto e largar no chão o corpo antigo.

Estou a entregar-me ao processo.

Afinal, somos sempre aquilo que tem de acontecer.

Não sem dor!

Pois o processo é difícil – uma espécie de agonia lenta e silenciosa,

quase imóvel.

A deformação dá-se sempre com grande vagar, dizem-me.

 

Há que despir o velho corpo como se fosse um fato já gasto.

É preciso coragem, depois, para se arrumar o velho fato no fundo da gaveta.

Exige força.

Após um hipotético renascimento bem-sucedido,

temos de nos ir escolhendo, de entre as mil coisas que podemos vir a ser.

É preciso separar o trigo do joio, dizem-me.

A escolha, também ela, é difícil.

Há todo um trabalho de despojamento.

Longo. Penoso. Lento. Incerto. Inseguro.

 

Sopesar o peso das coisas, não tem hora certa, para começar nem acabar.

Por vezes, dura mesmo o tempo da vida.

Ora se erra, ora se acerta, dizem-me.

Por vezes, o diabo empurra você nas escadas e

um anjo apanha, para você não se machucar,

para não danificar a sua nova forma.

Ontem mesmo, isso me aconteceu!

 

Por vezes, não resta tempo para mais nada e

há que baixar as expectativas, deixar-se propositadamente arrastar,

pelo vento ou flutuar à deriva, à tona de água.

Como folha morta ou poeira ou pena ou papel.

 

Há que simplificar e deixar o tempo cuidar de tudo – dizem-me,

até que venha outro dia e que o mundo pareça de novo uma nesga chata.

 


 

samedi 23 janvier 2021

vendredi 22 janvier 2021

 


Trata-se de uma situação simples: dizem que há que obedecer.

Se alguém cometer a imprudência de parar um instante a mais do que deveria, com o intuito secreto de desobedecer, ficará irremediavelmente comprometido.

Desde o instante em que alguém arrisca, lá fora, a desobediência, haverá uma repercussão agressiva, violenta e funesta.

A esta altura, alguns, sem memória clara do sucedido, já se perguntam: “Quando ocorreu o facto inicial?”.

O facto é claro. 

Já ninguém sabe quando se deu essa ocorrência do facto inicial.


Sem saber mais como lidar com o relógio, decido já nem o colocar no pulso. Surpreende-me até as pilhas ainda não estarem gastas.

Recolho-me, um pouco ferida por todas as partes. 

Cronologicamente, estou suspensa na poeira dos dias, pois já quase ninguém manda notícias de lado algum.

Por vezes, ainda trina o telefone e durante alguns minutos sou como que salva.

Amo, gratamente, quem me obriga a pensar em alguma coisa diversa, quem me liberta do ensimesmamento, ainda que já nada de importante seja mencionado, que já nada haja para contar e que as palavras não sejam mais do que a sombra dos protestos de outrora.

Algumas pessoas, sem nenhum objetivo outro do que o instinto de se salvar, começaram a tentar viver mais intensamente, como se pudessem ainda conectar-se ao destino precedente.

Tornaram-se numa espécie de merceeiros – pesando afanosamente e a cada momento, o que é e o que não é importante.

São, na maior parte, desajeitados e inexperientes na tarefa, outros tateiam modesta ou voluntariosamente, mas cada qual, pelo seu lado, continua a tentar distinguir o que é e o que não é essencial.

Tarefa inglória e vã. De nada adianta este aturado esforço de sopesarem. 

A trama escapa-nos diariamente. 

O presente é obliterado à revelia. Apenas, olhando para o dia passado, chegamos de algum modo à impressão evasiva de ter vivido. E a essa hora também já é de noite.

Fechamos os olhos e o sono não vem. E o sono é agitado.

E ao fazer o balanço insistente da nossa vida - mesmo incluindo o recente hábito de viver mais intensamente - o saldo é ostensivamente negativo.

Somos agora um clube de pessoas anónimas e amorfas, entre milhões iguais, com a exclusiva missão de obedecer, grata e civicamente.

 

A passagem descuidada e obtusa do tempo começa a tornar cada movimento diário algo subversivo e potencialmente desonesto  - o tédio apossou-se dos dias obedientes e a rebelião é iminente. 

A vida tornou-se irremediável.  

Na verdade, é uma vida como de sonho – nada concreta.  

O que é diário e repetitivo abole a extravagância.

O silêncio de tão calado assemelha-se à morte.

Temos a água acima da cabeça, sobrenadamos à tona. Os pés, esses, tocam no fundo, no leito do rio.

São assim os nossos momentos concretos, dos quais apenas nos queremos safar depressa.

Uma realidade de sonho vivida a contragosto, sem qualquer promessa de um único prazer perigoso, sem podermos beber, até nos embriagarmos, de uma qualquer fantasia ou de um qualquer possível futuro.

A pouco e pouco nos desprendemos indiferentes, já não somos tocados por nada. Nada mais há a dizer.

Somos obedientes, não apenas por gregária submissão, mas certamente por uma aflita superstição. Por tempo indeterminado. 

Chega-me tenuemente às narinas o cheiro da rebelião.

 

Esta manhã, olhei-me (nua) e, de muito perto, no espelho – deste modo perdendo toda a perspetiva – e vi uma cara pálida e um corpo mutilado e engelhado, de meia idade (com cinquenta e tal anos) e vi ainda os meus próprios olhos, doentes, de pálpebras descaídas e fundíssimas olheiras, cansados de tanto ver e de nada enxergar.

Toquei no fundo, e com a água até ao pescoço, quase perdi pé. 

Sorvi a água toda vinda do leito do rio e já sem nenhuma água que me afogasse, caminhei, expedita, pelo fundo arenoso - com a lepidez de quem sabe que vai bater com o dedo gordo do pé num calhau e cair de bruços, mais dia menos dia.

 


 

jeudi 21 janvier 2021

 


A solidão é agora grande e amarga.

 

De uma forma verdadeiramente dececionante,

começo a sentir-me cada vez mais esvaziada.

Quase a chegar ao árido impasse de mim mesma.

Ao mesmo tempo, o rebuliço da alma teimosa é ainda

Incómodo e insolúvel. Nada basta para encher os dias,

Os longos dias – senão essa furtiva aflição.

 

A solidão é agora maior e inexcedível.

 

Houve uma pausa, é certo, no curso das coisas.

Uma trégua que fez nascer esperanças vãs.

Agora, exaustos e desanimados, já não temos como

Contar as façanhas dos nossos dias, nem planear projetos

Dourados. Ninguém já quer aprofundar muito

O que lhe está sucedendo. Ninguém tenciona dar

Nada a ninguém com quem não possa estar.

 

Afinal o que podemos querer ainda uns dos outros? Nada.

 

Estamos fatigados e desiluminados.

Alguns de entre nós não se verão nunca mais, senão

Por acaso. Mais do que isso – não quereremos nos rever.

Os laços são corrompidos por decisão ou de supetão.

A disponibilidade ao outro escasseia

Como mercadoria putrescível.

A Amizade é uma palavra, esgotada na prateleira –

um truísmo sem valor, sem senso, sem emoção ao toque.

Nada.

 

mercredi 20 janvier 2021

mardi 19 janvier 2021

 

 

Tenho várias histórias verdadeiras e tenho outras que mentem meticulosamente.

As suas tramas, aquando da urdição, ora me trazem uma renovada alegria, quase excitada,

ora me arrastam para um desalento antigo e sonolento.

Cada história é uma orgia no escuro, um processo sôfrego, intensificado pelas alegrias do apagão.

 

As palavras mais finas e preciosas, com que preparo cada telão, são assaltadas, cortadas da boca que ainda canta e depois cinzeladas, em espanto de inocência, fugindo de dentro si mesmas.

As outras são fabricadas - pesadas e medidas a rigor – petrificadas, em molde de gesso, e

acabam cristalizadas no seu âmago duro.  Ora as uso com moderação, ora as esbanjo.

 

A próxima história de verdade, começa assim. E poucas usará.

 

Amanhece.

Olho friamente para a derrocada do nosso mundo.

Nesta história, apenas tremem, indiferentes, os ramos secos dos plátanos, sob o sopro do vento frio.

Uma nova era se inaugurou no lar.

Prossegue como se sabe – uma população lenta e entorpecida, caminha em fila indiana, movida, a custo, pela avidez do ritual formigueiro e síncrono, idêntico em todas as manhãs sonâmbulas.

Estremeço de mau prazer aos inevitáveis avisos e conselhos iterativos, ouvidos nos megafones das telefonias.

Ásperos instantes se irão somar, hoje, ao ritmo dos ponteiros do Relógio do Tempo.

À porta de cada um, ou à volta do pescoço, é colocada uma placa de mérito onde se pode ler: respeitou as regras e (Sobre)viveu mais um dia!

 


 

lundi 18 janvier 2021

 


 

Novo Lockdown.

 

Tenho, diariamente, a azeda impressão

de um instintivo mecanismo automático

de afastamento ao Outro.

Olhamo-nos, rapidamente, nos olhos

ou nem nos olhamos de todo, apenas enxergamos,

incomodados, os vultos alheios – de relance,

como mercadoria vendida ao postigo.

 

Os sorrisos, nos lábios, estão claramente suprimidos,

apenas indiciados em fugazes esgares assustados

(como nos sorriríamos agora se não tivéssemos máscaras?)

 

A distração, a instabilidade dos outros, a falta de disciplina

exige de nós, nos passeios, nas filas de espera, uma espécie de dança

de quadrilha, como num filme do faroeste, mudo e a preto e branco.

 

Franzir o nariz, deslocar os óculos e ajeitá-los, dar piscadelas ou pestanejar

não vão além de íntimas perplexidades, jamais adivinhadas pelos demais.

Esta capacidade estática e gélida de exprimir sentimentos para si-próprio,

esta aceitação (im)paciente do estado de permanente incerteza é

ironicamente, de bom conselho!

 

As bocas estão cravadas de ansiedade e nervosismo…

Os mais dóceis e bem-comportados, mais dóceis estão, outros

revoltam-se na constância da incompreensão.

“Como foi isto possível?”

 

Uma vez ou outra, os momentos são variáveis - contêm mais alguma coisa,

ainda que os sinta sempre cansativamente cumulativos.

Aos “dias inteiros”, sucedem-se outros “dias inteiros”, repletos de silêncio

e de mais alguma coisa,

ainda que com uma incalculável sequência de estéreis repetições.

 

Durante estes meses, em que dei as voltas que foram precisas

e tive de mostrar a satisfação necessária para me salvar,

deambulei adormecida pela casa, pontapeei raivosamente objetos e

parti alguma loiça, com o deleite próprio dos alucinados.

 

Agora, o círculo de minuciosas possibilidades que fui empilhando

está a mirrar como uma peau de chagrin.

Comecei a ter de decidir, de modo assaz arbitrário,

e sem grandes tergiversações, o que vou ser

durante um “dia inteiro” - uma ansiosa,

incapaz de suportar a confusão?

Uma palhaça feliz, rindo de tudo ou

uma palhaça triste a precisar de amor extra?

 

À medida que se desbulhou o calendário,

as minhas sucessivas inspirações, ligeiramente convulsivas,

foram, gradualmente, mudando de nível.

Abandonadas as cogitações temporárias,

cuido de não desequilibrar Toda a construção antecipada.

 

Ou os “dias inteiros” são horríveis ou

os “dias inteiros” são empolgantes,

segundo desejo que o sejam ou não,

segundo a naturalidade com que recebo, de chofre,

um “dia inteiro” vazio.

Trata-se, é certo, de uma imprevisibilidade permanente.

 

Mas,

 

quando tudo falha posso simplesmente decidir não ser nada,

nem ninguém por um “dia inteiro”.

Simplesmente, não ser.

 

É este o supremo safanão de liberdade.

Um “dia inteiro” que redima o passado e o futuro.

Um “dia inteiro”, em abstrato, sem um sorriso,

sem uma palavra, sem um pensamento,

sem nada ser, ter ou querer.

 

Talvez assim possa ver mais claramente o Mundo -

num relance mais profundo e simples da espécie

de Universo em que vivemos;

abolindo meticulosamente o desejo irrealizável,

o ideal inatingível, sem rancor, sem ultraje;

bebendo o elixir do longo sono;

tornando-me uma estátua de gesso, esturricada.

 

 

 

dimanche 17 janvier 2021


 ADN, 2020

Na rua vazia, até as pedras da calçada parecem retraídas.

Compreendem que elas também estão sós no mundo.

 

Hesito, antes de sair de casa, mas a cabeça estremece

como uma caixa de ressonância, prenhe de demasiados sons.

Torna-se imperativamente necessário ir à rua, aclarar as ideias.

 

O frio invernal espeta-me agulhas nos ossos esmigalhados

e tolhe-me as porosas articulações.

 

Os pés e as mãos distanciam-se, gelados, do resto do corpo.

 

Sentada numa pedra, olho conformada para o oceano.

Estou suportando, estoicamente.

 

Não cruzei ninguém na rua deserta.

É talvez demasiado cedo para se ir à rua,

numa manhã de domingo, em pleno Lockdown.

 

Os meus olhos lacrimejam.

O que fazer do desalento deste corpo seco,

à beira do soluço?

 

Em dias particularmente maus,

ele segue entregando-se,

num paroxismo excessivo,

à raivosa e insolente revolta,

inconformado à sua fatalidade;

mas lá acaba por se aquietar, atirado a um canto,

ora estático, ora descompassado

e atormentado,

como animal selvagem em sua jaula,

(acostumado a ela),

arfante na tarefa obrigatória de respirar,

totalmente submisso às regras do jogo da (sobre)vivência.

 

Quanto tempo passou já comigo aqui sentada,

fitando a linha de horizonte?

 

Tenho frio, mas teimo em não tremer.

É imperativo passar por cima do soluço.

 

Continuo por isso aqui sentada.

 

No meio de tanta vaga e fria impossibilidade…

No meio de tanta permanente incerteza…

No meio de tantas ruas desertas e de tantos esgotos secos…

existe ainda,

a cada instante,

(estou segura disso)

o apelo da pressurosa e

extraordinária Gravidade.

 

Nem uma só vez se deve olhar para baixo.

 

 


 Wankelmuth, Berlin 2020

samedi 16 janvier 2021

 

 

Olho para trás com um só olhar, curto e indivisível.

Um olhar nada complacente.

Parecem ter-se passado três milénios e eu passei já por vinte infernos

(o meu corpo mutilado e o meu espírito antigo assim o atestam).

Nada, porém, se mantém durante muito tempo no presente e,

dos dias idos, restam apenas algumas ténues lembranças,

tal é a pressa quase supersónica de tudo olvidar, de tudo enterrar bem fundo,

sem deixar rasto que se veja.

Quando morrer, tirarão de mim toda a matéria inerte qu’encapsula esta carcaça supersensível, fiel e dorida depositária de um silêncio, a que presto agora mais atenção, em torno do qual avanço, com cuidado.

Ainda estou viva, mas quando morrer,

é óbvio que quero que tirem tudo de mim, com o mesmo máximo cuidado ou não podendo, queimem minhas penas, até que se reduzam a cinzas.

Posso afiançar-vos, com alguma segurança, que o meu ‘eu’ de décadas não existe mais.

Como a luz das estrelas já mortas, ele sumiu do firmamento.

Ao meu novo ‘eu’ dedico este (re)começo.

Esta primeira vez em que abro os olhos, sobre este ser suspenso, que teima agora em não pousar em parte nenhuma e mal pousa já levanta voo outra vez.

Olho para o meu ‘eu’ atual com uma atenção voluntariamente superficial, um tanto oblíqua, mas suficiente. 

Tomo todo o cuidado para não aprofundar em demasia, não entender em excesso, não cair no desmesuramento, para não quebrar o que importa – o Mistério!

Olhar para lá da superfície é sempre profundamente errado. É perigoso demais.

Viver uma vida mundana é que está certo!

Não se deixar afetar, nem tocar por nada, está certíssimo!

Ser um projétil voluntariamente parado, é sábio.

Idealização? Jamais. Meditação? Nunca. Compreensão? Isso fere. Pensamento? Isso é vão.

Nunca lutar contra si próprio e, por extensão, contra outrem, é um dom, invisível a olho nu.

Há que alcançar a todo o custo essa penosa espontaneidade ou voltar a ela, porque certamente ela já foi nossa outrora.

Não viver foragida, por estar sempre adiantada para esta época.

Deixar de ser uma medíocre revolucionária – abdicar desse disfarce grotesco!

Estas são as leis gerais dos que querem continuar (sobre)vivos.

E também eu, como os demais, não quero morrer para a (sobre)vida.

Com o tempo, sei que me vou tornar imortal e o mundo ficará nu, logo, devo esgotar o assunto.

Esgotarei o perigo da veracidade inatingível da beleza, só visível para os iniciados.

Este é o modo de (sobre)vivência do qual hei-de escrever as linhas gerais.

(Sobre)viver é a salvação acessível.

Pois parece que viver já não existe, já foi.

Viver leva demasiadas vezes à morte.

(Sobre)viver é manter a luta contra a vida que é potencialmente mortal.

(Sobre)viver é um constrangimento, mas é necessário, ainda que não garantido.

Deve-se cumprir, ainda que doa estar (sobre)vivo sem se ter escolhido, sem ser-se tido ou achado.

Fui uma escolhida, sem senso da realidade, e nasci a susto e desarvorada.

Alguém interrompeu o meu devaneio intrauterino, o meu grande sono beato.

Desde que nasci, vivo como num sonho e/ou pesadelo.

Sofro de um mal desconhecido, como se tivesse vindo ao mundo com o erro dentro de mim, um erro de programação, nunca sei bem o que sinto, etc.

Etc., etc., etc., é a marca da profusão de ‘eus’ que pululam na minha vida interior.

A minha vida interior levou-me a agir como se entendesse.

Qualquer ameaça contra algum dos meus ‘eu’ e grito logo «Escândalo» feito uma doida.

Sou profundamente tonta, míope e obcecada. Como poderia eu ter-me entendido ou ao mundo com tanta contradição inútil de tragédia moderna?

Nunca servi sequer a mim-própria.

O meu destino humano universal é provavelmente mais importante do que os meus ‘eu’.

A sedimentação da minha vida pessoal (ultra)passada deixou de me interessar.

Já não reconheço nada do que havia dentro de mim, nem mesmo fora de mim.

A Metamorfose interior está-se fazendo devagarinho. E simultaneamente, lá fora, tudo arde também e a fuligem cobre a terra de cinzas acres.

Começo por expurgar aquilo em que não consigo mais crer.

Estou sem forças para poder seguir acreditando nas teses que tão soberbamente defendi.

Vão morrendo, à petit feu.

Olhei de mais para dentro e para fora e agora, exausta e exangue, estou adormecendo.

Mas não desejo sacrificar-me.

Apenas optei por ser menos do ‘eu’ infeliz, perdido e martirizado.

Dei tréguas a esse ‘eu’ desgraçado, constantemente crucificado, alienado e ensimesmado.

A tarefa hercúlea deste novo ‘eu’ é entregar-se, sem pejo, à vida comezinha.

Tem de queimar as iluminuras a que estava servindo devotamente, rasgar a pele preciosa que possuía, deixar de pensar no prazer como um dom que apenas lhe servia para distração e anestesia dos sentidos.

Doravante, o seu trabalho inexcedível de sapa é o de viver as dores e os prazeres indispensáveis.

É necessário que este novo ‘eu’ se cinja apenas à austera modéstia que representa a (sobre)vivência.

Fiquem sabendo que a dor é perfeitamente sobreponível ao prazer.

A dor é doravante um destino sem disfarces, servindo sem glória de função maior.

É categoricamente necessário que eu seja uma ocupada e uma distraída de outra índole, sem qualquer tipo de ambições.

Tenho de abster-me de me destruir, de me consumir, de me dissimular orgulhosamente, ao querer participar sempre um pouco mais de coisa nenhuma.

Poucos suportam perder todas as ilusões.

Eu fazia parte deste bando até há pouco.

Voluntariei-me, desde cedo, para a ilusão do amor, pensando, ingenuamente, que ele enriqueceria a minha vida pessoal e colmataria a irremediável ferida da solidão.

Foi o contrário!

Descobri, finalmente, a incomensurável pobreza em que vivi até hoje.

Amar é verdadeiramente não ter nada. Nem a si-próprio.

É a desilusão total do que se pensava ser a essência do próprio amor.

E não é nenhum prémio, nem nenhuma exceção honrosa.

É tão somente o castigo supremo!

Da vida, poucas instruções recebi. Ou talvez não as compreendi.

Senti-me amiúde sem apoio.

Por vezes, revelou-se intolerável não ser compreendida e não ter explicações.

A raiva dessa revolta consumiu-me mais do que tudo.

A minha profunda inocência, a inefável ingenuidade, a minha aparente coragem em buscar a verdade, que era uma tolice sem nome, o meu desejo de lealdade que nem sempre foi uma coisa limpa - as escolhas não eram óbvias;  apenas me dificultaram um pouco mais a vida.

Quase sucumbi aos seus golpes impiedosos.

Sei agora que (sobre)viver pode ser extremamente tolerável.

(Sobre)viver também ocupa e distrai de formas insuspeitas.

Por vezes (sobre)viver, até faz rir.

É este o Mistério tão tardiamente descoberto.

Ter a necessária modéstia de (sobre)viver apenas.

Tornar-se num meio e não um fim.

Ser maliciosamente livre e aproveitar tudo.

Beber do copo e do cálice, até ao fim.

Usufruir do tempo que resta en sursis.

Usar esse tempo para prazeres e dores ilícitos, inteiramente esquecida da(s) miséria(s) do Universo.

Esta terá de ser a minha simplicidade futura para uma (sobre)vivência conseguida e feliz.

Esta terá de ser a minha nova liberdade.

O meu emprego consistirá em diariamente esquecer.

Esquecer o(s) meu(s) erro(s).

Esquecer a minha má fortuna.

Esquecer o(s) meu(s) amor(es) ardente(s).

Esquecer a minha mão trémula.

Esquecer a minha revolta e a minha preciosidade.

Esquecer o meu corpo mutilado.

Esquecer os abusos de confiança.

Esquecer as traições.

Esquecer o coração devoto, batendo demasiado de emoção e de adoração possessiva.

Esquecer para dormir o sono dos justos.

Dormir o sono dos justos por saber que a minha vida ociosa e extremamente fútil tampouco atrapalha a grande marcha do Universo.

Por devoção à excelsa (sobre)vivência, devo entregar-me sem delongas ao meu interesseiro esquecimento.

Hoje, olho para o horizonte e não vejo nascer o sol.

Da linha de horizonte, ou não vejo nada ou só vejo o ocaso.

Ainsi soit-il!

lundi 11 janvier 2021


 

première mer calme de l'année
aux pluviers se mélangent
des bergeronnettes

Hajime ( XX e s.)

mercredi 6 janvier 2021



Rien ne sert de se rebiffer -

la mort est hargneuse et impitoyable

sa morsure,  inéquivoque et littérale

 

mardi 5 janvier 2021


Cette journée d'hiver

il fait chaud au soleil

- mais froid

Onitsura

samedi 2 janvier 2021


Il a plu assez

pour que le chaume dans les champs

passe au noir


Bashô