lundi 28 novembre 2022

"Segue outra historia.

Wakigori é um districto da provincia de Iyo, na ilha de Shikoku. Ha em Wakigori uma velhissima e mui famosa cerejeira, chamada Jiu-roku-zakura - a cerejeira do XVI dia do anno. - Vem-lhe a denominação da curiosa circumstancia de florir durante um dia só de cada anno, que é o decimo sexto do primeiro mez lunar, antigo calendario. Ora tal quadra é a dos grandes frios, das nevadas repetidas; e as cerejeiras florescem no Japão, como é sabido, em plena primavera, amena e cariciosa. Mas a Jiu-roku-zakura  floresce com uma vida que não é, ou antes, que não foi originalmente a sua propria, pois se contém n'aquella arvore o espirito de um homem.

Tal homem foi um samurai da provincia de Iyo, e no jardim da sua casa vegetava a arvore de que fallo, cujas flores desabrochavam na temporada habitual, isto é, de março a abril. Era uma cerejeira com seculos de existencia, frondosa, de amplo e nodoso tronco; á sombra d'ella, o samurai brincára muitas vezes durante a sua infancia; como tambem á mesma sombra haviam brincado seus paes e seus avós, e ainda por certo mais remotos ascendentes. Elle proprio, o samurai, attingira uma avançada idade; e já seus filhos, já seus netos, á sombra da mesma cerejeira, haviam passado longas horas da sua meninice; e todos - elle, seus paes, seus avós, seus bisavós, seus filhos e seus netos - se tinham deleitado, durante uma longa sucessão de primaveras, na contemplação das deliciosas florescencias da arvore companheira. O velho samurai a nada queria tanto n'este mundo como áquella cerejeira familial!...

Ora, em certo estio, as folhas mirraram-se e cahiram e morreu a cerejeira. Uma catastrophe!... A dor do samurai foi cruciante e a toda a gente fazia dó vel-o penar. Visinhos carinhosos trouxeram-lhe então para o jardim uma outra cerejeira, viçosa, florescente, imaginando por este modo consolal-o. O velho agradeceu, promettendo varrer do coração suas tristezas; mas manda a verdade que se diga que o mal de que soffria era incuravel. Um dia, por signal o decimo sexto do primeiro mez do anno, ocorreu-lhe ao pensamento uma maneira de salvar ainda da morte a sua querida arvore. Elle sabia que uma pessoa póde dar a propria vida em beneficio de uma outra, mesmo de um animal, mesmo de uma planta, quando os deuses propiciem esta troca. Tomada uma firme decisão, dirigiu-se sósinho ao seu jardim, curvou-se reverente diante do tronco resequido e proferiu estas palavras : - «Digna-te continuar a florescer, pois vou morrer por ti ...» - Vestindo-se então todo de branco, como recommenda a pragmatica, e servindo-se das práticas do estylo, cravou no proprio ventre a sua espada de guerreiro, baqueando sob o sólo, banhado n'um mar de sangue... O espirito do samurai entrou na cerejeira, que n'aquelle mesmo instante se engalanou de flores. E continua florindo em cada anno, no decimo sexto dia so primeiro mez lunar, na quadra das nevadas ...».


in Carta do Japão, Vol. III, de Wenceslau de Moraes

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