lundi 26 avril 2021

 

COMMENT PEUT-ON ÊTRE PORTUGAIS?

 

Esta frase é uma das mais conhecidas da literatura francesa e deve-se ao barão de Montesquieu. Decidi subvertê-la, desvirtuá-la, fazê-la minha e arrastá-la para esta história.

A minha tese é simples:

Como se pode viver num país onde os tentáculos viscosos da Administração Pública nos enredam e nos sugam irremediável e constantemente, atirando-nos para um vórtice abissal e medonho?

A minha teoria é que não se pode, sem perder a temperança.

A minha apreciação é empírica e corresponde tão somente à vivência de uma cidadã lambda, sem conexões, sem conhecimentos, sem cunhas, sem fortuna pessoal.

O cidadão com ligações terá, certamente, uma experiência e uma apreciação muito diferentes da minha. Pois neste ameno jardim do Éden, à beira-mar plantado, a corrupção tem outro nome e o cidadão comum, sem amigos, colocados nos sítios certos, não se pode valer de nada. Digamos que a corrupção existe, não existindo e é privilégio de alguns os happy few.

Pessoalizo, já que só posso falar do que conheço, em primeiro mão, e do que vivenciei, nestes últimos quase trinta e sete anos. Um dia decidi que afinal era portuguesa e mudei de país e de planeta, trazendo comigo uma mala de viagem (que não era de cartão), uma mochila e um filho da puta dum cérebro, com demasiados neurónios a carburar.

É por isso, a custo que renego a minha escolha antiga. Nunca, como hoje, senti tanta vergonha em ser portuguesa. E não há rosas, nem girassóis, nem papoilas, nem cravos que me convençam, volvidos estes anos, que este país não é uma desgraça absoluta.

Vou exagerar e afirmar até que, a mim, Portugal se me afigura um país subdesenvolvido, sem desprimor por alguns países em desenvolvimento, mais evoluídos do que nós, que os há.

Aliás, ousarei dizer até, que este país “ O milagre dos 900 anoscomo a ele se referiu o nosso predilecto MRS, no ano passado , é pior do que um país subdesenvolvido.

É que, num país em desenvolvimento, um cidadão lambda vai a uma repartição e, segundo boatos ouvidos, de uns e de outros que viveram em países assim rotulados, fica horas no meio de um amontoado de outros cidadãos e vai empurrando, acotovelando, avançando como pode, até que se extrai da selva e chega finalmente às goelas da jiboia, não sem levar, porém algumas notas no bolso, para as esticar discretamente, chegado o momento oportuno, e assim aumentar as probabilidades de ver o seu problema resolvido. Portugal era assim há umas décadas. Lembram-se? Agora já não!

E por que digo eu que é pior este borrão de país? Porque nesses países assim rotulados, o cidadão lambda já sabe ao que vai, com o que conta e como são tratadas e (não) resolvidas as coisas. Não cria grandes expectativas.

Aqui? Ora bem, vejamos, Portugal é membro da UE, desde … 1986?! Pasme-se. E a administração pública portuguesa continua um antro de corrupção, de incompetência, de laxismo, de ignorância, de arbitrariedades várias e difusas. Quais boas práticas? Quais desburocratizações? Quais formações e aprendizagens ao longo da vida? Deixai-me rir!

Em Portugal, já não se resolve nada com notas enfiadas, no meio da papelada, como outrora. Agora a corrupção é insidiosa e perversa. E raciocinando pelo absurdo é quase uma pena. O dinheiro era uma alavanca tão potente, uma chave multiusos que abria todas as portas estanques, que quase preferia ter de esticar uma notinha de euro, a ficar hipertensa e à beira de um ataque de nervos, de cada vez que tenho um encontro de terceiro grau com a administração pública portuguesa onde careço de ombro amigo e diligente.

Portugal é pior que um país subdesenvolvido porque nos cria expectativas. Muitas expectativas logo defraudadas! Aqui achamos que impera o estado de direito, que há respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos, que há bom senso, democracia, solidariedade. Deixai-me rir!

Do ponto de vista meramente pragmático, e excluindo os princípios da moralidade, a notinha corrupta quase compensava ao cidadão lambda afanado, sem amigos, nem conhecidos em instâncias da res publica, que agora pode andar meses, anos para resolver aquele que, aos olhos do comum dos mortais, até se afigura o assunto administrativo mais escorreito. Aquele assunto  que é tão óbvio, tão lógico que tem de ser resolvido apenas de uma maneira. Mas não, não tem resolução possível!

Aqui é Portugal, que não é um país subdesenvolvido, mas há várias maneiras de complicar um assunto por mais simples que seja, de forma intoleravelmente perversa e à revelia da lei sem que ninguém se ofusque. Senão não teria piada. Qual seria a graça?

A bem dizer, como quebraríamos nós a monotonia da espuma dos dias. E então agora com a pandemia e os confinamentos, não é tão mais excitante colocar mais uma barreira na corrida dos 400 metros, a qualquer desgraçado por mais estropiado que nos apareça?!

Um pouco de jindungo no prato de feijões do cidadão lambda, só mais um pouquinho. Que gozo que nos dá vê-lo assim com a boca a assar!  Assim nos aproximamos mais de África! Imperceptivelmente, o enredo ubuesco vai-se avolumando e com singelos passinhos de dança, deslizamos como num minuete,  até ao mundo de Kafka e os dias ganham, de repente, outro entrain! E quando damos por ela já rodopiamos, à beira da náusea, num gigantesco carrossel descontrolado!

Na realidade, eu acho que até devia olhar para isto sob outro prisma que não o do descontentamento amargurado!

Como não se regozijar por viver num país, que não sendo subdesenvolvido, com todos os inconvenientes inerentes já sobejamente conhecidos, se lhe assemelha na quantidade de emoção diária que é capaz de nos suscitar. Tanta efervescência insuspeitada!

É que ao tentar resolver um qualquer problema junto da administração pública portuguesa, apercebemo-nos que afinal estamos vivos e sentimos! Ainda temos emoções! E temos de dar graças por essa descoberta!

Sentimos primeiro um leve incómodo, um pequeno ardor no estômago, depois uma pequena infecção intestinal que nos traz agrura e uma azia incontornável; em seguida, uma erupção cutânea, acompanhada de alguma comichão e em casos extremos, um fabuloso ataque de caspa.

Numa qualquer repartição pública, quando somos bafejados pela sorte, obtendo a benevolência dos serviços, e chegamos à fala com um humano, muito rapidamente, estarrecemos e nos interrogamos se estaremos bem sintonizados para produzir e ouvir sons em língua portuguesa. Tudo isto causa um não despiciendo impacto intelectual que nos pode trazer grandes benefícios no combate à degenerescência cerebral, por exemplo!

É mais ou menos como naquela história em que um homem comprou um puzzle de 1500 peças de um quadro de Vieira da Silva, e levou meses a construir a obra, até que chegado à parte final, após aturado esforço, se apercebe que lhe faltam quatro peças. O homem tenta, a todo o custo, recuperar as peças sumidas do seu puzzle, reclamando telefonicamente, mas debalde porque ninguém, na loja, atende telefonemas.

Após várias tentativas vãs e já um pouco frustrado, com o maldito puzzle, em cima da mesa da sala, ostentando quatro buracos incomodativos, o homem decide enviar um mail ao dono da loja. Só que este último tem mais o que fazer e passa a batata quente ao seu empregado, com quem o homem fica a trocar inúmeras mensagens polidas e cordatas, na esperança de que o problema seja resolvido, um dia.  

O assistente da loja, não conhece esse produto. Nunca viu nenhuma caixa com o puzzle de Vieira da Silva, não sabe de quantas peças é feito o puzzle, nem sabe que o vendiam na loja, mas vai dando respostas vagas e fazendo perguntas recorrentes, ao homem que se impacienta a cada nova acometida do subalterno.  

A dada altura, volvidos uns bons cinco meses, quando já quase havia perdido esperança de qualquer resolução e havia guardado o puzzle numa arca, o homem recebe, por correio, uma peça de puzzle. Mas Ô rage! Ô désespoir! Ô vieillesse ennemie!

A peça única não corresponde a nenhum dos hediondos orifícios do seu puzzle. Estarão a brincar com ele! O homem sente uma indignação sem limites.

Irado, o homem desloca-se, em pessoa, à loja, e pede para falar com o empregado obtuso que, muito rispidamente, lhe responde que nada tem que ver com o assunto.

O homem revoltado não arreda pé e ameaça escrever uma queixa no livro de reclamações. O empregado, também zangado, remete-o para o serviço de assistência pós-venda, uma espécie de subsolo esconso onde se encontra a secção de reclamações amigáveis.

A moça do pós-venda, não sabe como nem onde procurar as peças em falta. Também nunca ouviu falar do puzzle Vieira da Silva o que não facilita nem um pouco a sua tarefa e começa a hostilizar o homem quando este se torna irritantemente insistente.

A moça, para se livrar do homem, pede-lhe que ligue para o fabricante do puzzle, já que a loja faz apenas revenda. Eles com certeza terão uma explicação a lhe dar e saberão onde se encontram as peças em falta. Terá de ligar para o número da fábrica. É o número xxxxxxx 57 ou 37, no fim. Não sei bem qual é. Olhe marque os dois. E fale com a colega Loira Dona De Um Só Neurónio.

O homem faz a escolha errada. Liga para o número xxxxxxx 57 e ouve, agastado, uma voz tonitruante: “Centro Pneumológico de Cascais, em que posso ajudar?” Afinal era o número xxxxxxx37. Nunca acerta numa!

Liga então para o número xxxxxxx 37 que atende ao fim de repetidas tentativas.

O homem, com a paciência presa por um fio, ainda tem de ouvir, mais uma vez, da bocarra da secretária do dono da fábrica, de nome Loira Dona de Um Só Neurónio, as mesmas extravagantes e irremediáveis perguntas grotescamente kafkianas que já lhe foram colocadas, vezes sem conta, pelo dono da loja e pelo seu assistente e depois ainda pela moça das reclamações.

A secretária do dono da fábrica rapidamente decidiu que as peças do puzzle não se encontram em lado nenhum, não existem, provavelmente nunca existiram e provavelmente as inventou ele, o homem, decerto um vilão inqualificável, descendente dos maiores bandidos, delinquentes, contrabandistas que vem reclamar peças às quais não tem direito ou é muito duvidoso que a elas tenha direito. «Já passou tanto tempo desde que comprou o puzzle, porque não as reclamou antes?! Não consegue acabar o puzzle?! E eu com isso?! Olhe deixe um buraco! Que eu já estou farta de ouvir recalcitrantes. Homessa! Que eu tenho uma vida e não é a ouvir as vossas queixas que me regozijo. Ah não! E se não está satisfeito meta o puzzle no lixo. O quê?! Diz que vai reclamar?! E vai reclamar a quem meu querido?!

Ao dono da fábrica?! Ah!Ah!Ah! Ao dono da loja?! Ah!Ah!Ah!»

E chapou-lhe com o telefone na cara.

O homem queimou o puzzle. E nesse mesmo dia foi viajar para parte incerta. Saiu do país e nunca mais foi visto.

Esta é uma parábola dos meus recentes desencontros com a administração pública portuguesa, a propósito do reembolso de taxas moderadoras que paguei indevidamente.

 

Moral da história: Vai de viagem e não voltes! E jamais digas que és Portuguesa!

 

 

 

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